25.2.07

O Zeca de Magalhães que eu conheci

Foi assim rápido e inesperado. O primeiro e-mail informava que Zeca de Magalhães tentava consertar uma goteira no telhado de sua casa. Caiu, bateu a cabeça, deu traumatismo craniano, estava no hospital em coma. Dias depois, o segundo e-mail fez acabar as nossas esperanças. Zeca não mais habita o mundo dos mortais.

Zeca: "Pensador"


Conheci Kzé, como também era chamado, no Colóquio de Literatura Popular, no mês de novembro do ano passado. Durante a pré-produção do evento, eu procurava um palestrante que falasse de poesia sem academicismos, na linguagem do povo.
.
Gustavo Felicíssimo me mandou uma lista de poetas, os quais poderiam falar da Poesia Marginal. Vi o nome de Zeca lá. Lembrei que Vânia Medeiros trabalhava com ele no CRIA (Centro de Referencia da Infância e Adolescência) e fiz contato com ela.
.
“Ró, Zeca é maravilhoso. É o cara que você tá procurando”, disse Medeiros. Confesso que achei que Vânia exagerava, mas mesmo assim liguei para o Zeca.
.
Tivemos um contato rápido e ele demonstrou bastante interesse em se fazer presente ao evento. Não fez nenhuma exigência, depois me enviou cordéis do CRIA. Fui até a sede da ONG conversar com ele. Lá, fui recebido com bastante cordialidade. Zeca quis saber do Colóquio, deu idéias e ainda sugeriu nomes para ocupar a vaga de outro companheiro que, de última hora, não poderia estar presente. “Quero participar do evento todo, não só no dia da palestra”, me disse ele.

Recitando poema no Vinhos & Versos

.
Em Irará, gostou muito do Vinhos & Versos. Observou e recitou poesias de sua autoria. No sábado, chegou cedo na feira-livre, trazia uma banquinha de cordéis. Mais do que assistir a apresentação dos repentistas, como havia combinado, queria “participar do evento”. A tarde não foi diferente. Assistiu a oficina de cordel de Gutenberg e observou a xilogravura sendo ensinada por Gabriel Arcanjo.

Vendendo cordeis na Feira-Livre

.
Ao final das oficinas na Casa da Cultura, tivemos um pequeno bate-papo na descida até a sede da Filarmônica. Zeca queria saber onde seria a palestra da noite. Neste pequeno caminho ele contou a mim e a Marcílio um pouco das peripécias da sua vida.
.
Foi muito interessante ouvir o relato daquele carioca que devido a uma desilusão amorosa, viveu literalmente o que tem naquela canção do Barão Vermelho. Ou seja, viajou a pé do Rio a Salvador.
.
“Comprei uma lata de “Grand Prix” e encerava caminhões nos postos de combustíveis”. Relatou Zeca para demonstrar como conseguia dinheiro para se alimentar, nos vários dias da viagem em que, por algumas vezes, pernoitou no mato, debaixo da chuva, no seu saco de dormir.
.
À noite, no horário combinado, Zeca estava na sede da Filarmônica 25 de Dezembro para a palestra. Gustavo Felicíssimo era o outro conferencista.
.

Gustavo falou primeiro e abordou uma espécie de conhecimento para poder se trabalhar com poesia. Zeca olhava para Gustavo e fazia suas anotações. Chegou sua vez de falar. Foi de encontro a algumas das considerações de Felicíssimo. Falou simples, na linguagem do povo. Se fez entendível para aquele pequeno público presente. Abordou não só a poesia, mas a cultura, a vida e os sentidos da mesma.

Um bom debate com Felicíssimo (de amarelo)
.

Ouviu muitos comentários positivos com relação às suas falas. Lembrando do momento em que Zeca discorreu sobre os vícios da academia, Edma Oliveira aproveitou para fazer uma constatação: “Zeca você é muito inteligente, se você tivesse o curso universitário, nem sei onde você estaria”, disse a professora para frisar que alguns só valorizam quem tem o diploma.
.
Vendo todos empolgados com Zeca, eu já não achava que Vânia tinha super-valorizado o seu amigo. Pelo contrário, acreditava agora que minha colega havia sido modesta, porque a satisfação do público para com o palestrante foi muito maior do que eu poderia prever.
.
No domingo, encontrei Zeca de Magalhães pela manhã, lá na Pousada de Dona Emília. Ele havia acordado há pouco tempo. Depois foi à Casa da Cultura e gravou entrevista para o vídeo do evento com Daniel Cortês, Mateus Damasceno e Bruno Buke. Deu aula abordando a resistência da cultura popular perante a cultura massiva. Na seqüência, tentei levar Zeca até a casa do amigo Zé Nogueira, mas fomos impossibilitados pelo avançar da hora.
.
“Não se preocupe Robertinho; gostei de Irará. Achei muito interessante a cidade, as pessoas, a feira-livre daqui. Um final de semana desses, eu volto e trago minha esposa. Ela está precisando sair para espairecer. Perdemos um filho há pouco tempo em um acidente automobilístico, ela está muito deprimida”, me relatou Zeca de Magalhães preocupado com sua companheira. Ele ainda avaliou que seria bom ela trocar idéias com Nogueira, pois, assim como ela, Zé trabalha com artesanato e faz oratórios em miniaturas.
.
À tarde, na hora da despedida Zeca me sugeriu uma idéia. “Vamos colocar Irará no projeto Ser-tão Brasil!”. Gostei da sugestão. Ele me falou que poderíamos criar uma representação através da Casa da Cultura. E já em 2007 entraríamos como cidade convidada. Uma excelente proposta para os iraraenses se integrarem a este movimento que a cada ano une, numa cidade sede diferente, a arte e a poesia de onze municípios do interior baiano, escolas e representações de mais de vinte bairros de Salvador e da RMS.
.
Outro dia, vou subindo a ladeira em direção a Biblioteca Central do Estado, nos Barris, quando ouço um chamado. “Robertinho Irará!”. Era Zeca visual um pouco modificado devido a barba, mais crescida com relação ao dia do Colóquio. Parei para falar com ele. Brevemente me contou seus planos de mudança para Cachoeira, de montar uma livraria lá. Sua filha passou no vestibular para a Federal do Recôncavo e ele pensava em fixar residência no interior.
.
Conversa prazerosa. Lembramos de projetos a serem feitos. Fiquei de procurá-lo para ver a idéia do Ser-tão. Idéias, planos, vivencias... Tudo abruptamente interrompido. Por uma goteira. Uma queda. Uma morte estúpida. Fatalidade humana, cujo sentido relutamos em compreender, sobretudo quando se parte ainda jovem de modo totalmente inesperado.
.
Daquele último bate-papo, fica a lembrança do sorriso e do sotaque de alguém que acreditava na vida. Foram poucos encontros, poucas conversas, mas, ainda assim foi possível aprender algo com aquele poeta.
.
José Narciso de Magalhães Carvalho de Moraes Filho era mais do que um dos poetas na praça, agitadores da Praça da Piedade nos anos 1970/80. Mais do que um nome da Poesia Marginal. Mais do que um produtor cultural. Zeca, pelo que pude perceber, foi um guerreiro em prol da cultura. Um humanista. Captei essa mensagem no Zeca que conheci. O “tempo” nos tirou a oportunidade de conhecê-lo mais.
.

Fotos:

Vinhos & Versos - Emerson Nogueira

Outras - Daniel Cortês, Bruno Buke, Mateus Damasceno - não necessáriamente nessa ordem, ou nessa composição.

20.2.07

Era uma vez...

...duas grandes árvores na Praça da Bandeira (Jardim do Coreto) em Irará.









* Cliques feitos em 25 de janeiro de 2007.



16.2.07

Salvador Negroamor: imagens do verão

A exposição Salvador Negroamor com certeza está entre as imagens marcantes do verão soteropolitano. São 1.501 painéis expostos ao ar livre por toda parte da capital baiana. O destaque das imagens são pessoas do dia a dia da cidade de Salvador e de Angola.


Painel na esquina da Av. Ademar de Barros com Av. Oceânica

.
Vendedores ambulantes, cobradores de ônibus, transeuntes do cotidiano da cidade, entre outros, configuram os “anônimos” apresentados na mostra. Claro, pessoas com nome e identidade, apesar da mídia parecer não considerar assim. Daí, as aspas.
.
É notório que para se fazer a exposição e seus painéis gigantescos nos prédios, outdoors, fotografias em postes, entre outros mídias, gasta-se muito dinheiro. O projeto captou cerca de R$ 2 milhões via Lei Rouanet. Fato que tem gerado questionamentos e algumas polêmicas em torno da mostra.
.
Discussões à parte, a repercussão da exposição também encontra espaço para comentários sobre o seu sentido e impacto social. Entre eles, os dos próprios fotografados. "Quando fui ver a foto da minha filha, na Linha Verde, fiquei parada, muda, sabe por quê? Estamos vendo a revolução dos humilhados", diz a dona de casa Hilda Almeida dos Santos, 48 anos, em entrevista para a reportagem do A Tarde On–line.
.

Postes foram usados como suporte em quase toda a cidade
.

Elevar a auto-estima destas pessoas é outro ponto defendido na exposição. Em entrevista ao programa Soteropolis, que vai ao ar pela TVE-Bahia, Sérgio Guerra, fotografo e produtor da exposição, também defendeu esta idéia.
.
Numa outra entrevista para o jornal Correio da Bahia, Guerra vai além: “Quando olho para Salvador, vejo uma cidade dividida, preconceituosa e muitas vezes racista. O conceito de cidade alta e cidade baixa aqui é literal”, desabafa.
.
É bom lembrar que Salvador Negroamor não se resume à mostra fotográfica. O projeto também compreende a produção de um CD, o edição de um livro e a fundação de uma ONG, a qual já criou uma escola para alfabetizar adultos na Feira de São Joaquim.
.
“A Riqueza” - prima pobre
.
De todos os argumentos, contra ou a favor, da exposição Salvador Negroamor, um me incomoda. Especificamente o comentário de alguns analistas sobre o “ineditismo da idéia de evidenciar pessoas “anônimas”” – olhe as aspar de novo.
.
A mesma abordagem foi feita pela exposição a “Riqueza de Irará”, realizada pela Casa da Cultura de Irará em janeiro de 2005, dois anos antes de Salvador Negroamor. E, quem sabe, neste imenso Brasil, outros já tenham tentado fazer o mesmo sem sucesso.
.

O diferencial é que na mostra realizada em Irará, não houve leis e, quase, nenhum outro tipo de incentivo. E, sem a magnitude da prima soteropolitana, a exposição iraraense não atingiu o grande público ou mobilizou a cidade.
.
No entanto, o pouco destaque atingido pela mostra iraraense fez cumprir o seu objetivo. Ou seja, mostrar que pessoas são o maior patrimônio. E a maior riqueza de um lugar são as pessoas que o compõe. Prerrogativa que também marca Salvador Negroamor ao chamar atenção para a riqueza da capital baiana e de Angola.
.

- visite portal do projeto Salvador Negroamor: www.salvadornegroamor.org
- leia abaixo texto publicado na época sobre a exposição “A Riqueza de Irará”.
Fotos de Shirley Stolze "tomadas de empréstimo" no site do Salvador Negroamor

Reconhecimento da própria fortuna

Mostra fotográfica surpreende fotografados
.
- texto escrito e enviado para grupo iraraense (iraraense@yahoogrupos.com.br ) em fevereiro de 2005 -
.
A Casa da Cultura de Irará realizou no sábado, dia 29 de janeiro, a segunda mostra fotográfica do mandato atual. Com imagens captadas por Zé Falcón, estudante de jornalismo na Universidade Federal da Bahia – UFBA, a mostra pretendia chamar a atenção da população iraraense para a beleza que existe “escondida” no dia a dia da comunidade.


Cartaz da Exposição mostra foto de transeunte da Feira Livre

.
O titulo, “A Riqueza de Irará”, foi inspirado no pensamento de Edimário Duplat. Estudante do curso de Produção em Comunicação e Cultura da mesma Universidade. Edimário, quando conheceu Irará em julho de 2003, afirmou que “o maior patrimônio de Irará são as pessoas” e diante da própria afirmação se questionava: “O que faz essa gente ser assim? É a água?”. Seja pela água ou pelo fogo abrasador de quem é “nascido da luz do sol” (1), o certo é que a revelação reflete a riqueza de um de povo que parecia estar se descobrindo.

.

Açougueiro admirado com própria imagem

Fotos expostas nas paredes, olhos brilhando nas faces. Para alguns, era difícil se imaginar retratados em reproduções, digamos... artísticas. D. Andreza, vendedora da barraca de sandálias na feira de Irará, confessou: “Eu já tirei muitas fotos rindo, mas nunca com um sorriso assim”. Emoção mesmo sentiu o açougueiro, apontando em estado de contemplação para sua imagem. Saiu, voltou, trouxe amigos para ver. O mesmo se deu com a senhora que vende mangaba.
.
A jovem grávida exclamou, “aqui!”. Na foto, o policial alisava o seu ventre aguardando um próximo rico iraranese. A menina do caldo de cana e sua mãe concederam entrevista para a TV Subaé. Depois de se reconhecerem em fotografias, identificar-se-iam no vídeo, via jornalismo televisivo de Feira de Santana. A TV reportou, cartazes, “mosquitinhos”, “boca a boca”, ainda assim, nem todos ficaram sabendo do evento. Talvez por isso, não foram se ver retratados. Outros, como o moço que teve sua imagem publicada no cartaz, ouviram dizer por terceiros. “Ele é meu sobrinho, vou contar pra ele”, disse a tia do “modelo”. Teve quem saísse sem nada comentar. E para alguns, aquilo tudo era estranho.
.

“Eles tiraram fotos até dos feirantes”. Pobre senhora, nem percebeu na sua afirmação a discriminação arraigada na sociedade brasileira há séculos. Aquela de que gente só são os nobres, políticos, celebridades, os VIPs (do inglês, very important person). Pessoas importantes mesmo, são eles. Os construtores do município, aqueles que fazem o dia a dia e movem a economia e a vida local. Quem sabe já com esta percepção, a funcionária da limpeza pública municipal questionou: “Por que não faz uma com os garis também?”. “Boa idéia”, respondeu Roberto Martins, presidente da Casa da Cultura, certificando seu pensamento de que uma verdadeira política cultural deve mexer ai, na auto-estima das pessoas. Assim eles se sentirão gente, povo, nação, edificando a sua identidade.
.

Noção de política pública não pura e simplesmente apaixonada, mas já com a sua dose de racionalismo. Admitindo a não rejeição do pensamento vigente, mas pensando em maneiras de como usufruí-lo para depois nega-lo. Sendo assim, nada de mais estando em pleno circuito festivo, colocar um bar na exposição. Isso permitiu o seu parcial funcionamento durante a noite, visto que as fotos maiores permaneceram nas paredes e possibilitou sua visão até para aqueles que não se importavam em ver a Mostra Fotográfica. “Isso aqui não é exposição não. Isso aqui é um bar. Só que botaram esse negocio ai”. Explicou um popular em plena festa, não percebendo a riqueza de Irará e ficando um pouco mais pobre.
.

Com uma exposição que mostrava as pessoas de Irará em meio à maior festa popular do município, a festa da padroeira, a Casa da Cultura realizou mais uma etapa de sua atividade. Gratos a todos que contribuíram. Sr. Raimundo Ribeiro pelo espaço, Viva Irará pelas esteiras, Casa do Artesão pelos potes e especialmente ao camarada Zé Falcón. Ele é desses que, como diria o conterrâneo Tom Zé, nasceu com defeito de fabricação e acredita que se apresentarmos a este povo a sua própria fortuna, pode começar a “nascer Jesus Cristo e Fidel Castro pra todo lado”.
.
(1) Existe um quase consenso popular de que “Irará” em linguagem indígena quer dizer: nascido ou criado da luz do sol ou do dia. No entanto há dicionários de línguas indígenas a classificar “Irará” como animal mamífero que gosta de se alimentar de mel. Existem outras versões populares para o significado do nome da cidade.

.
Texto do Cartaz:

"É preciso que a lente mágica enriqueça a visão humana"*

As pessoas. O povo. Na feira, nas ruas, no seu trabalho diário. Os indivíduos que constroem o Irará de cada dia. Alguns deles, sempre vemos, mas não sabemos nome, ou mesmo onde moram. Estas personalidades, e todas as outras não captadas pela lente de Zé Falcón, cada uma a seu modo, fazem este município ser o que é. Elas são o nosso maior patrimônio. A riqueza de Irará.

* Aspas de Carlos Drummond de Andrade.