1.11.07

Um comerciante sem pressa e amigo dos concorrentes

Nada de multidões. Amigos, familiares e antigos clientes foram os presentes ao sepultamento do Sr. Lúcio de Jesus, na manhã de ontem em Irará. Comerciante de tradição na cidade, “Seu Lúcio”, como era mais conhecido, contava 90 anos ao se despedir deste velho mundo; cruel na visão de muitos.
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Estando no enterro ou sabendo da notícia é impossível, para aqueles que o conheceram, não lembrar de Sr. Lúcio no balcão de sua loja. Lá, no estabelecimento de nome fantasia e placa indicativa como “Casa Maria Luíza”, porém mais conhecido por toda a população como “Venda de Seu Lúcio”, ele atendeu gerações de iraraenses.
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- Seu Lúcio? Tem borracha?
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- Tem meu filho; um momento.
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A pressa era mesmo inimiga do atendimento para Sr. Lúcio. Não é atoa que entre seus muitos clientes, há ainda quem se recorde que quando um comprador chegava muito apressado, com um chamado urgente do tipo “Seu Lúcio despacha aqui!”, ele então respondia: “Se tiver com pressa, pode ir comprar noutro lugar”. Às vezes as resposta vinham com um tom um tanto quanto áspero, contrastando com o perfil paciente do vendedor.
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E não foram somente os apressados os ouvintes de indicações para comprar em outra loja. Muitas vezes os clientes de Sr. Lúcio foram orientados por ele a ir comprar nos vizinhos, naqueles que poderíamos chamar de concorrentes.
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- Eu tenho aqui, mais ali em Fulano, você vai achar um com uma qualidade melhor – indicava Sr. Lúcio.
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- Olhe, aqui tem, mas, ali na loja A tem mais barato – alertava.
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Sr. Lúcio nunca deve ter freqüentado um curso de marketing, feito qualquer preparação em técnica de vendas ou lido algum método de como seduzir a clientela. Entretanto era com a sua sinceridade que ele, ao que parece, de modo nada intencional, conquistava a assiduidade do cliente. Comprar em Sr. Lúcio era ter a certeza de não estar sendo enganado.
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Diante de sua personalidade séria e popularidade, um dia acharam que Sr. Lúcio deveria ser prefeito de Irará. O calendário marcava o ano de 1970. A candidatura de Lúcio era adversária da juventude festiva da época que numa marcinha eleitoral tentava situar os lugares dos candidatos e, talvez, a “necessária” falta de seriedade na condução política. “Parrinha na Prefeitura e Sr. Lúcio no balcão”, dizia a música.
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Eleição perdida, ele continuou no balcão, ao qual foi ligada a sua imagem, onde o atendimento era personalizado. Quando não era o próprio Sr. Lúcio, estava lá Alfredinho sempre pronto para receber o cliente, portando o seu lápis na orelha. Gesto copiado pelos garotos na escola, quando brincavam de caixeiro.
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Certamente todos que freqüentaram a Casa Maria Luiza devem ter lembranças daquele ambiente. O balcão de mármore, com base de madeira; as prateleiras, algumas com portas ou gavetas; a balança típica com pesos para por num prato e fazer o equilíbrio com o outro onde estava a mercadoria; o cesto pendurado com o cordão para amarrar os embrulhos...
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Ninguém pensava em shopping centers ou mega estore, pois, lá naquele ambiente humilde se encontrava de tudo. Material escolar, cimento, cereais, ferramentas para o trabalho rural, pregos, anzol, sabão, papel jornal velho, artigos para o lar, linhas para costura, etc, etc, etc.
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Quantas e quantas crianças não já se debruçaram sobre aquele balcão para comprar “novelo de quarenta” para soltar pipa durante o verão?
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Há muito não ser ver garotos soltando pipa em Irará. Há algum tempo Sr. Lúcio não mais atendia no seu balcão. Aposentado, de vez em quando era visto à porta de sua casa, respondendo a um ou outro que passava e lhe dava um "bom dia" ou um "boa tarde". Talvez nem lembrasse quem era a pessoa, mas certamente devia saber se tratar de alguém que algum dia já foi atendido no balcão da “Venda de Sr. Lúcio”.
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* Estas linhas foram escritas com base na vivência e numa conversa com o amigo Zé Nogueira durante a missa de sepultamento de Sr. Lúcio de Jesus.


Um comentário:

Juracy Paixão disse...

Lembro-me de Lúcio de Jesus, nos anos 50, indo vistar papai nas manhãs de domingo. Os comerciantes abriam meia-porta a fim de arrumarem a casa após a labuta do sábado. Lúcio chegava:"E aí, Pereira, como foi teu sábado?". Lúcio , ao que me recorde, era o único a nomear papai como Pereira, no lugar de Manoelzinho. Papai, tão matreiro quanto ele, respondia: "Não foi assim tão bom quanto o teu, pois meu estoque é pouco sortido". E se punham a conversar sobre fretes de caminhoneiros (que traziam suas mercadorias desde Salvador,onde se abasteciam a maioria dos comerciantes de Irará). Falavam de Piroca Brejão (de sua concorrência de atacadista e varejista)e de Alfredo Franco ( que não concorria, porque era somente atacadista).Falavam da politica local e estadual: Desde Juracy Magalhães até Elísio Santana;desde Antônio Balbino até Amaro Medeiros. Despediam-se e fechavam suas meias-portas.
Tenho saudades de Lúcio de Jesus, aquele da casa Maria Luiza.

Juracy Paixão