6.6.08

Um tributo a Antônio Vieira


Capa autografada do CD "O Cordel Remoçado"

A primeira vez que vi uma apresentação de Antônio Vieira foi numa reunião política. Era o ano de 2003, se não me engano, e o Partido dos Trabalhadores fazia uma Conferência Estadual de Cultura, lá na Faculdade de Comunicação da UFBA.

Fiquei encantado com arte de Vieira. Aquela coisa simples e tão bela. O jeito calmo e sereno de cantar, falar, narrar e apresentar as histórias das suas músicas.

Na frente do auditório da Facom, Antônio Vieira e sua Viola. Na frente de Vieira uma militância na labuta de discutir cultura durante um dia inteiro. Na música daquele santamarense, muitas lições de vida. A exeburante beleza da simplicidade, talvez incompreendida por muitos teóricos da cultura.

Para mim, o sentimento de descoberta era como a surpresa descrita por um outro santamarense em uma de suas canções. A apresentação de Vieira surpreendia, não por ser exótica, mas pelo fato de que, até então para mim, aquela forma poética tinha tido, sido, estado, oculta; quando poderia ter sido óbvia.

Foi-se aquele dia, ficou a lembrança. Lá mesmo na Facom, em tempos de aulas, descobri que o colega, então estudante de Jornalismo, José Inácio Vieira de Melo, era amigo de Vieira. Comentários, elogios e a vontade de ouvir Antônio Vieira novamente.

A oportunidade então chegou. Já estávamos no ano de 2005. Tínhamos conseguido aprovar um projeto no primeiro Edital BNB de Cultura. O Colóquio de Literatura Popular, com foco no cordel, era o evento perfeito para uma apresentação de Antônio Vieira em Irará.

Depois de pegar um número de telefone com Inácio, lá fui eu para o primeiro contato. Sondagem de preços e possibilidades. Vieira me comunicou das suas condições. Antes da viagem para apresentação era preciso disponibilizar 50% do cachê acertado. Como a gente faz para combinar? “Venha aqui em casa”, disse Antônio me informando do seu endereço, junto ao convite.

E eu fui. Lá fui muito bem recebido pelo casal Vieira. Antônio e Coraci. Conversamos sobre o acerto da apresentação ele me deu um exemplar do seu CD - O Cordel Remoçado.

Expliquei ao cantador as dificuldades do evento. Não tínhamos nenhuma verba por conta de atrasos burocráticos. Ficou acertado que iríamos conversando. Da segunda vez que tive em casa dele, a notícia também não era nada animadora. Além dos atrasos, os bancos estavam em greve.

Tudo bem. Vieira disse que viria a Irará assim mesmo. “Eu percebo que você é um rapaz sério”. Diante do aumento do peso da responsabilidade, eu só pude lhe agradecer e torcer para que tudo desse certo no final.

Antônio Vieria esteve em Irará. Ele, sua viola e D. Coraci. Antônio tocou e agradou muito. Era hora então de acertar o singelo e extremamente merecido cachê.

Quem disse que o dinheiro tinha chegado?

Não chegou a verba e também não veio reclamação de Vieira. Ele “esperou com paciência”, assim como Romano, personagem do Debate Maior, peleja de sua autoria.

Aquele dia, cerca de um mês após o nosso primeiro contato, já possuímos uma boa amizade. Eu já tinha tido o prazer de ouvir, confortavelmente sentado no sofá da casa dele, as suas ricas histórias. Ele também já tinha ouvido das minhas.


Douglas de Alemida, D. Coraci, Antônio Vieira,
Franklin Maxado e Roberto em Irará. Out/2005.


Em Irará, Antônio Vieira autografou o meu CD: “Para o meu amigo Roberto. Continue na sua missão de cultivar a sua aldeia. Um abraço de Antônio Vieira. Em 8/10/2005”.

Demorou um mês e pouco e o dinheiro saiu. À essa época, meu contato com Vieira já era mais próximo. Ele me convidava para a casa dele e não pedia cerimônia. “Venha! Almoce aqui com a gente”, dizia. Eu, sempre com receio de parecer inconveniente, tentava recusar um convite ou outro, apesar de gostar muito de estar lá.

Na casa de Antônio Vieira o papo era bom e rolava até umas horas. Eu aproveitava para ir perguntando, comentando e discutindo com ele as letras do seu Cordel Remoçado.

História do Debate Maior. O Trole de Serapião e Gustavo. A lenda dos curadores de cobra e do acarajé. A Conjuração Baiana cantada em cordel, pela narrativa da atuação de Manoel Faustinho. Já Chorrilho, trazia nas entrelinhas, irreverências como a “fresta da moral”. A greta como uma janela indiscreta das cidades interioranas.

Nestas conversas trocávamos coincidências e diferenças entre Santo Amaro e Irará. Tentei ver se Maria Tábua tinha alguma semelhança com Maria Bago Mole, cantada por Tom Zé. E vi que Maria Bago estava mais para o Bordel Artesanal, descrito por Vieira na trilha de número 08 no seu CD.

Confeccionada pelo selo Sons da Bahia, a obra foi produzida pelo iraraense Roberto Sant’anna. O então Diretor Geral da Funceb, Armindo Bião, faz a apresentação: “Agora ouça a voz e o que canta Antônio Vieira, seu destino ficará mais rico, seu coração mais aquecido, sua vida melhor”, diz Bião, também Professor da Escola de Teatro da UFBA e Pesquisador do CNPq.

O conselho soa como uma rendição da academia diante da cultura popular. E a “Peleja da Ciência com a Sabedoria Popular”, é justamente o título de um dos muitos cordéis de Antônio Vieira.
Esse tema merecia muita atenção por parte dele. Vieira defendia uma presença maior da cultura popular nas escolas:

“A escola perde tempo
Preciso por sinal
Em não ter feito a fusão
Com a literatura oral
E enquanto não fizer
O homem e a mulher
Vão vivendo muito mal”

A estrofe do cordel sintetiza bem seu pensamento. Vieira reconhecia a importância e valorizava a ciência, mas acreditava no potencial e criticava a discriminação para com a sabedoria popular. Pregava a união entre o erudito e popular.

“A nossa poesia é uma só
Eu não vejo razão pra separar
Todo conhecimento que está cá
Foi trazido dentro de um só mocó
E ao chegar aqui abriram o nó
Foi como se ela saísse de um ovo
A poesia recebeu sangue novo
Elementos deveras salutares
Os nomes dos poetas populares
Deveriam estar na boca do povo”

Em 2006, faltando uns dois meses para a UFBA completar 60 anos, sugeri a Vieira fazer um cordel sobre a história da Universidade. Ele se empolgou com a idéia. No entanto, me disse que não conhecia muito da história da renomada instituição.

Procurei na biblioteca e levei-lhe alguns livros sobre o tema. O tempo foi passando e Vieira, também envolvido com outras atividades, não produziu o cordel. O aniversário passou e resolvemos engavetar a idéia.

Se não pudemos conhecer a trajetória da Universidade nos cordéis de Vieira, passamos a conhecer a história de muitos outros personagens. Um deles foi Bezouro de Santo Amaro. A narrativa de vida do capoerista de corpo fechado levou Antônio Vieira ao cinema.

Uma equipe americana fez um documentário sobre Bezouro e Vieira era um dos entrevistados. Parece que vejo agora, diante de mim, o seu sorriso de satisfação com a obra, quando me apresentava e informava que aquele filme esteve em cartaz nos cinemas lá nos Estados Unidos.

Empolgação e otimismo eram mesmo marcas de Vieira. Não me lembro de vê-lo triste ou desanimado. Sempre incansável e fazendo planos, ignorando o câncer que já possuía quando lhe conheci.
Antônio Vieira estava consciente dos riscos da doença. Ele sabia dos efeitos do tratamento. Entretanto, às vezes, ele falava da proximidade das sessões de quimioterapia como quem diz ir à farmácia comprar um comprimido para resfriado.

05 de julho de 2007, após defender uma monografia de conclusão de curso, um outro Antônio, o Barreto, me deu a triste notícia: Viera não estava mais fisicamente entre nós. Já havia quase um mês, do acontecido em 10 de junho, mas estive tão envolto naquele trabalho que nem soube.

Diante da notícia de Barreto, lembrei-me que no mês anterior, houve um dia, no qual me veio na memória o amigo Vieira, mas preocupado com os prazos acadêmicos, nem peguei o telefone para tentar falar com ele.

Dia desses, o mesmo Antônio Barreto, me comunicou de um Tributo. Amigos, familiares e colegas de pelejas, estarão reunidos no Quadrilátero da Biblioteca Central, no Bairro dos Barris em Salvador.

O dia é, terça-feira, 10 de junho, às 18:00. Lá na Biblioteca Central acontecerá a saudosa e póstuma homenagem. Repentistas, xilogravuristas, poetas, cantadores, entre outros artistas, estarão a postos, cada qual com sua arte, para lembrar do talento daquele “vate de grande qualidade”. Vieira usava esta expressão para se referia aos cordelistas de renome.

Lá, todos vão lembrar do Antônio que partiu três dias antes da data de homenagem ao santo seu chará.

Além da obra, fica a memória e a lembrança. Aprendemos muito com aquele Antônio. Casamenteiro do cordel com a música. Da viola com os versos. Da elegância com a simplicidade.
.
* Imagem da Capa do CD - Do meu Acervo Pessoal
** Foto - José Falcón

6 comentários:

José Lopes disse...

Bela e justa homenagem, companheiro.

Parabéns pela iniciativa.

Anônimo disse...

Caro Roberto Martins!

Sem duvida, uma homenagem que dá uma passada nas nossas lembranças e sai varrendo qualquer tristeza dos nosso matulões sem fundo, entupidos de viagens poéticas e lapidadas do nosso eterno Antonio Vieira. Lembro muito bem dele, dos nosso recitais e criações cordelisticas juntos, nessa cidade arretada, nas bibliotecas e praças soteropilitanas.

Saudade é um aperreio
De quem na vida gozou
É um grande saco cheio
Daquilo que ja passou

Patativa do Assaré

Abraço e parabéns por trazer a tona suas lembranças para nos emocionar.

Inté + V!

Sérgio Bahialista

Anônimo disse...

conheci Antonio Vieira em 1970, em Feira de Santana fomos colegas de escola e sei que era uma pessoa encantadora. Naquela época ele já contava "causos" da sua infância em Santo Amaro(BA), eu ria muito. Depois soube da sua morte e fiquei triste, realmente foi e é uma grade perda.

Anônimo disse...

Conheci Antonio Vieira em 2005 e publiquei entrevistas que eu fiz nele. Em Roma fizemos um programa radiofonico a ele dedicado e ele participou falando no telefone de Bahia. Foi uma Luz conhece-lo, ouvir as historias dele, a sabedoria dele. Ele e Coracy. Acho muito importante o trabalho dele, Cordeis maravilhosos. A sua semplicidade e a grandeza na sua semplicidade e Arte Poetica notavel. Resgate de Memoria, resgate de historia, de cultura popular. O papel dele è importantissimo. Obrigada Antonio, para Sempre com seu Cordel Remoçado: A Poesia Popular deveria estar na boca do povo...

Kátia Moraes disse...

Oi Roberto,
Obrigada pela homenagem que vc fez. : )
Eu moro em Los Angeles e vou fazer um show em homenagem a Maria Bethânia e gostaria de declamar um pedaço dos "Poetas Populares" no show. Por um acaso vc sabe que ano ele escreveu o texto?
Meu email é katia@katiamoraes.com
Tudo de bom!
Kátia

Roberto Martins disse...

Olá Katia,

Acho que você se refere à música "Poesia" que abre o CD, cuja capa é a primeira imagem do texto. O CD foi lançado em 2004, mas não sei se este é o mesmo ano de publicação da música.

Ele também escreveu alguns cordeis sobre o tema. Entre eles, A Peleja da Ciência com a Sabedoria Popular.

Indico a você tentar contato com Coraci Vieira, a viúva do Antônio.

Segue o Facebook dela:
https://www.facebook.com/coracy.tavera?fref=ts

Abs!

Roberto Martins