11.11.08

Diante da Vera Felicidade

Aquele outono em Salvador tinha ares de verão. Apressado, desci do ônibus e, por entre prédios numa daquelas ruas com nome de alguma Unidade da Federação, no Bairro da Pituba, procurava pelo endereço anotado.

Confirmação com o porteiro, identificação, interfone. Tarde ensolarada de 30 de abril de 2007, estava apostos para mais uma das entrevistas que fiz para a monografia sobre a militância política e cultural de Aristeu Nogueira Campos.

A entrevistada era Vera Felicidade de Almeida Campos, filha de Aristeu e Odete Almeida. Neta de Elpidio Nogueira e Ubaldino Almeida (Pitaco) referências política e intelectual em Irará.

Naquela entrevista, com a primogênita de Aristeu Nogueira, buscava por novas informações e confirmações. A intenção era igualmente me certificar de fatos já mencionados em livros ou nas conversas anteriores com Diógenes e Mariana de Almeida Campos, também filhos de Aristeu.

O papo fluía com facilidade. Fatos da família Nogueira, os primeiros anos da infância de Vera em Irará, a juventude entre perseguições sofridas pela família do comunista Aristeu...

E a história avançava... A ida de Vera para o Rio, o encontro com o pai na clandestinidade, a luta para tirá-lo dos porões do Doi-Codi, entre muitos outros fatos e acontecimentos.

Num dado momento - quase no final da entrevista de cerca de duas horas - dirijo-me a Vera com uma pergunta, um tanto quanto provocativa, acerca dos resultados do comunismo e mais especificamente com relação à militância cultural de Aristeu em Irará.

Diante da Casa da Cultura hoje desestruturada e sem apoio, o Arquivo Público – criado com tanto sacrifício – destruído, entre tantos outros exemplos, perguntei-lhe: “Foi em vão a luta de Aristeu?”

Daí a entrevista virou uma mine-palestra. Vera passou a me expor o pensamento de que a vida não deve estar limitada ao pragmatismo, à busca de resultados. Falou-me da importância de avaliar o processo e as conseqüências dele.
.
A conversa foi avançando com exemplos. Ela abordou que se avaliássemos o comunismo pelo fim da União Soviética, talvez não percebêssemos a importância dele como tal, tendo uma espécie de pensamento de que “deu em nada”. Por outro lado, observando o processo e o andamento do movimento, podemos ver quantas conquistas o comunismo obteve. Entre elas, o fato de ter sido importantíssimo e decisivo para conter a insanidade de Hitler.

O mesmo pensamento para a Casa da Cultura. A conjuntura atual, nada pode dizer diante do trabalho feito, das conquistas e realizações para Irará, desde a criação de órgãos como a Biblioteca Pública Municipal, até o fato de ter sido razão de influência para pessoas que hoje lutam pela cultura no município.

Saí de lá com a reflexão sobre o assunto e a curiosidade de conhecer mais o trabalho da Psicóloga Vera Felicidade. Dias depois, acessei o site:
www.verafelicidade.com.br
.
.
Home page do site de Vera Felicidade
.
Bisbilhotando a página, entre as teorias e os livros de Vera, me deparei com um arquivo de matérias e entrevistas concedidas aos jornais A TARDE e Correio da Bahia.

“Não há regras, o que nos define é nossa relação com o mundo, com o outro e conosco. O ser humano não é bom, nem é ruim, mas tem o infinito dentro de si, que é a possibilidade de se relacionar.” (Correio da Bahia – 19 de junho de 2002)

“Quando ele ver que pode mudar de percepção, deixar de viver em função das necessidades, passa a viver as possibilidades e descobre que não há meta, não há resultados, o importante é existir” (idem)

“Quando esta relação [homem – mundo] é vivenciada como possibilidade, o mundo é consequentemente ampliado, tanto quanto as perspectivas humanas; quando esta relação é vivenciada como necessidade, amesquinha-se o humano, e o mundo é transformado em sua prisão, controlada por desejos e medos” (Caderno 2 - A TARDE - 19 de junho de 2002)

As citações acima, colhidas em matérias sobre o lançamento do sétimo livro de Vera, intitulado A Questão do Ser, do Si Mesmo e do Eu, lembraram-me do que me foi dito pessoalmente.

Novidade para mim foi algumas outras informações sobre Vera que fui aos poucos descobrindo na leitura das matérias disponibilizadas no site.

Vera Felicidade, formada em Psicologia pela UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro – é criadora da Psicoterapia Gestaltista. Esta teoria psicoterápica, exposta em seus livros, foi desenvolvida com base nos estudos dos gestaltistas clássicos da gestalt psychology, como Koffka, Koehler e Wertheimer que entendem o comportamento como um processo perceptivo.
.
Tentando falar de modo simplório, da forma que eu entendi, é quase como aquela coisa da relação figura-fundo da Teoria da Gestalt. Aquelas imagens que vemos e, muitas vezes, não sabemos qual a figura e qual o fundo, sendo que a definição vai depender do nível de percepção de cada um.


Figura x fundo: uma taça ou duas faces?

Então, de forma grosseira, posso falar que percebi a gestalt psychology como a aproximação entre alguns conceitos da gestalt e a psicologia. E Vera Felicidade então criou uma forma terapêutica com base nestas teorias e na relação do ser com o mundo e suas milhares de variáveis.

“Todo relacionamento gera posicionamentos, geradores de novos relacionamentos, que por sua vez, geram novos posicionamentos, indefinidamente” (A TARDE – 16 de maio de 1988).

Este é mais dos pensamentos da psicóloga Vera Felicidade, nascida em Irará e que, conforme apontam a matérias de jornais públicadas sobre o seu trabalho, “revolucionou a psicologia ao negar a idéia do inconsciente”; “é considerada o maior expoente em sua modalidade terapêutica na América Latina”; “e tem no curso de Psicologia da UFBA uma disciplina que leva seu nome: A psicoterapia Gestaltista de Vera Felicidade”.

Numa citação do disco Brasileirinho, Maria Bethânia diz que: “Felicidade se encontra em horinhas de descuido”. Antes de religiões, bens materiais, realizações sociais ou quaisquer outras coisas, também acredito que a tão almejada felicidade pode estar nas coisas simples, no óbvio, como descrito por Caetano na Letra de “O Índio”.

E foi pensando nisso, nas metas e resultados e nos processo vividos ou a serem vivenciados no futuro que lembrei daquela entrevista.

“É o processo...”. Estar diante de Vera Felicidade me pensar em perceber assim. Quem sabe ali, diante da Vera Felicidade (para usar “de + a” como fazem os paulista a se referir a alguém) eu não estava diante (próximo – pelo q me foi feito perceber) da vera (de verdadeira) felicidade.

Aquela entrevista pode ter sido o começo da percepção de que talvez devamos nos concentrar no processo, na relação com o ser e o mundo. Esqueçamos dos temores: “vai dá certo?”. Não tem tanta importância. Talvez pensando o resultado apenas como conseqüência e não causa poderemos ser mais felizes.

2.11.08

Rasgando seda pra Rogério Duarte

Ele é conhecido como o Designer do Tropicalismo. Há muitos que dizem que na verdade, ele foi além. Consideram-no um dos teóricos do movimento. Contudo, foram as imagens produzidas por Rogério Duarte que caíram nas graças do público e o tornou conhecido.
.
O trabalho dele está em muitas capas de discos, como em alguns dos primeiros de Caetano e Gil; em marcas de instituições, a exemplo da TVE; e em cartazes de filmes.
.
Entre os anúncios feitos para a sétima arte, está um dos trabalhos de maior destaque de Rogério: O clássico cartaz, do também clássico filme de Glauber Rocha, “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. A referência à obra é tamanha que, às vezes, ela serve até como cartão de apresentação quando se fala do Professor Duarte.
.
“Você conhece Rogério Duarte? Aquele do cartaz de Deus e o Diabo!”
.
Tive a felicidade de ter sido aluno de Rogério na Facom-UFBA. Não tinha pretensão de ser designer, nem tampouco me matriculei numa disciplina da área. A matéria cursada foi “Comunicação e Arte”, de cunho teórico.
.
Só que eu não estava ali somente para discutir os clássicos textos dos grandes teóricos da arte. O meu maior interesse, ao fazer aquele curso, era ouvir de perto a voz da experiência de alguém que esteve no seio do efervescente Movimento Tropicalista. E consegui um pouco.
.
Enquanto aluno, às vezes atacando de repórter, tive oportunidade de ouvir algumas histórias. De acontecimentos, de exposições, de personalidades da cultura brasileira. “Você veio da terra de Tom Zé? Ele era um dos melhores de todos”, me disse Rogério assim que soube que Tom era meu conterrâneo.


Capa de disco de Caetano Veloso - 1967


Às vezes sinto que poderia ter aproveitado mais aqueles momentos, contudo, fico feliz porque sei que houve quem aproveitasse mais e melhor do que eu.
.
Daniel Côrtes, meu colega de semestre na faculdade, pesquisa e curte o Tropicalismo. Embora em momentos e disciplinas diferentes, Daniel também foi aluno de Rogério. E além de ter sido um estudante participativo, Daniel saiu do curso como amigo do, quase sempre incompreendido, inconformado e até injuriado, Rogério Duarte.
.
Torço para que a amizade dos dois resulte em grandes trabalhos. E acredito que o primeiro deles acaba de sair. Trata-se do curta “Rhada, Deus e o Diabo”. Um vídeo feito por Daniel, um pouco às pressas e sem equipamentos sofisticados ou adequados, mas com grandes qualidades.
.
Rhada está entre os cinqüenta selecionados, dos 209 inscritos, para concorrer no XII Festival Nacional Imagem em Cinco Minutos, que acontece em Salvador entre os dias 10 e 15 de novembro próximo. O vídeo documentário flagra Rogério acendendo um fogo, no momento em que ele estar prestes a preparar sua comida.
.
Até ai nada demais. O mais intrigante do filme é o combustível usado por Rogério para alimentar a chama. Cópias e mais cópias do Cartaz de “Deus e o Diabo”.



cartaz do filme Deus o Diabo na Terra do Sol

Quantos, Brasil e mundo afora, não pagariam para ter aquele cartaz na parede da sala ou do quarto? Rogério, o autor da obra, simplesmente o queima. Parece um ritual de renascimento ou purgação.
.
Cenas que dão margens a centenas de interpretações. Sobre a relação obra X artista; fama X ostracismos; nascimento, processo de industrialização e morte da obra; a obra servindo de combustível para saciar a fome (do organismo ou da alma?) do artista... enfim. Cenas interessantes que se interpõem a depoimentos de Rogério.
.
O áudio também entra com força e chama para a reflexão desde o inicio. A trilha sonora do vídeo é o poema Gita Govinda, traduzido do sânscrito para o português pelo próprio Rogério e intitulado na língua pátria como: “Rhada, tu és Minha Paixão”. Na interpretação, o poema recebe como presente a inconfundível voz de Lirinha, poeta e vocalista do grupo pernambucano Cordel do Fogo Encantado.
.
O áudio, também revela surpresa no final do curta. O som vibrante de um rasgão e um pedido de Rogério.
.
Rasgar até parece um ato de protesto. Interessante a força do som de um rasgão presente na obra que fala de um artista com Rogério Duarte. Alguém que, talvez por ter sido um “subversivo” entre “subversivos”, falem tão pouco dele nos grandes veículos de comunicação e até em algumas homenagens à Tropicália.
.
Parece que há quem deseje que Rogério seja página rasgada na história da arte no Brasil...
.
A parte boa é que ainda existe muita gente legal por aí a fora rasgando seda pra Rogério Duarte. Pode ser que, neste momento, aqui neste pretenso blog, eu seja um deles, mas quero louvar a atitude de Daniel.
.
Volto a dizer. Torço, espero e acredito que este seja apenas o primeiro trabalho que Daniel possa fazer sobre a obra rogeriana. Vamos levar fé de que muito mais deverá pode vir por aí.
.
Agora, chega de rasgar seda, porque o leitor, provavelmente já ficou curioso para ver o vídeo. E depois, se ficar rasgando muita seda assim, não vai sobrar nada quando os meninos quiserem apertar...
.
Veja o vídeo: aqui
.
Imagens do Google Imagens