28.3.12

Artista de atitude no Buzu


Nos ônibus urbanos de Salvador já ouvi muitos dizerem: “Pessoal, desculpe interromper a viagem de vocês”. De vendedores de doces e outros atrativos a ex-viciados pregando a cura através de centros de recuperação, tem de tudo. 

Até hoje guardo na memória a cena de um cego. Ele só tinha como companhia seus dois instrumentos. Uma vara de tatear e um acordeom. Preparava o recipiente para receber os donativos e começava a tocar. 

Ficou marcado ele cantando uma canção do veio Lua. Ele tinha emoção na voz. Ao descrever a dor do personagem tema, o ceguinho parecia falar da sua própria dor: “Mas assum preto/ cego dos olhos/ não vendo a luz canta de dor”.

Lembrei desta cena na sexta, 16. Entrou um rapaz com um acordeom no ônibus. Este não era cego, mas me despertou para algo inusitado. 
Como dito acima, já vi muito personagens vendendo coisas no buzu. Já vi pedintes. Presenciei necessitados. E outros que nem pareciam tanto. Só não tinha visto artista divulgar seu trabalho musical. 


"se aprumou na lateral 
de um dos assentos e passou a tocar"

“Gil do Arcordeon” é o nome dele. Não tinha jeito de artista. Parecia tímido e talvez até envergonhado do que estava fazendo. A voz era um pouco baixa. 

Anunciou que iria passar um CD e tocar um pouquinho. Não era obrigado ninguém ficar com o disco. O custo era de modestos R$ 2,00. Valia menos que a passagem (R$ 2,50).  

Depois o artista foi até o meio do ônibus, se aprumou na lateral de um dos assentos e passou a tocar. Tocou “brasileirinho” com seu acordeom.

O som do instrumento não estava muito agradável. Não sei se era algum defeito. Não sei se o acordeom, denunciado pelo seu aspecto velho, reclamava dos anos e das tocatas. Não sei se foram os meus ouvidos. 

Eu queria ouvir. Já o passageiro da fileira ao meu lado... “nem tchun”. Fone no ouvido, ele estava distraído e movimentava a cabeça levemente. O interesse era maior para o som que saia do seu aparelho. Pelo formato, parecia ser um Ipod. 

“Aí não pode!” O cidadão parece nem ter percebido o Gil. Este, fez uma brevíssima tocata de uma música só e logo se postou a recolher os CDs ou o dinheiro dos dispostos a “contribuir” com aquela participação. 

Eu vi um, vi dois, vi três devolverem o CD. Quando passou por mim, fiquei com um exemplar. Pelo conjunto da cena, achei por merecimento reconhecer. Logo, a moça ao meu lado também ficou com um. Depois a outra à minha frente. E na sequência outra pessoa lá adiante.


"o artista sentou-se 
nas primeiras cadeiras do ônibus"

Então o artista sentou-se nas primeiras cadeiras do ônibus. Estava sem idosos, gestantes ou outros a merecer o direto. Às suas costas, as marcas de suor nas tiras do instrumento criavam suspeitas. O labor já devia durar algum tempo. Deveria vir de bem antes daquele começo de tarde de sol escaldante depois de uma breve tempestade de verão.  

Enquanto ele esperava a próxima parada, para descer, subir noutro ônibus e exercitar novamente a sua verve, passei a olhar a capa do disco dele. 

Curioso. Ao fundo uma cena pastoril. Em primeiro plano uma sanfona, ao ar, sem tocador. A imagem, quem sabe, representa a situação de muitos cantadores como o Gil. Invisíveis do grande público, da grande mídia, das majors, do mundo... 

Para aumentar a sua “invisibilidade”, o Gil ainda parecer ser pré-internet. Na ficha técnica e nas outras informações na capa do disco não há sequer um endereço de e-mail. 


Capa do disco: 
Ao fundo uma cena pastoril. 
Em primeiro plano uma sanfona, ao ar, sem tocador.


Sem Palco MP3, Youtube, My Space, Facebook, Melody Box, Cloudy Sound, ou qualquer rede social do tipo, fica ainda mais complicado para o Gil aparecer no atual cenário da música, onde CD é apenas cartão de visita.

Imaginei quantos artistas na mesma situação dele não deve existir neste Brasil de meu Deus. Neste sertão nordestino. Santos guerreiros na eterna luta contra o dragão da maldade. O sonho de ter seu trabalho reconhecido e não mais serem vistos como pedintes. A quem cabe a ladainha: “compra pá majudá!”

Particularmente, eu não achei o som do Gil lá esta “coca cola toda”. Mas... se for em época de São João, tomando um licor, num bate coxa numa sala de reboco... possa crer que é uma trilha sonora maravilhosa. 
De qualquer sorte. Parabéns ao Gil. Pode ser que não seja bom artista. Pode ser que não seja bom camelô. Mas mostrou-se um cara de atitude.

Ei Supresa!!!! 

Quando estava fechando o texto, por curiosidade, resolvi colocar o nome de Gil do Acordeon no Google. E não é que me deparei com um site do cara. E lá tem link para várias redes sociais. 

Percebi que deve ser algo recente. Afinal ele continua um pouco invisível. No momento dessta postagem, ele só tem um amgio no Face. Dois seguidores no Twiiter. E ainda nenhum vídeo no Youtube, mas já tá na net. Acho que ninguém mais quer ficar de fora dela.  


- Visite o site de Gil –

12.3.12

“A CHAMA DA ATENÇÃO”


Texto de Emerson Nogueira - Mersinho 

A madrugada do dia 29 de fevereiro de 2012 foi terrível, algo queimava meu juízo ao ponto de não deixar-me dormir.  Insônia, desconforto, preocupação, não sei bem, mas a cena vista dias atrás buliu a consciência. 

Numa manhã de domingo viajei e no trajeto uma “visagem” chamou-me atenção. Embora estivesse a quilômetros da ocorrência, pude observar que não era uma simples queimada. A fumaça misturava-se às nuvens deixando uma cicatriz no horizonte, rapidamente pensei nas arvores e animais perdendo a vida. 

"A fumaça misturava-se às nuvens 
deixando uma cicatriz no horizonte"

Não sou ativista, mais se tem uma coisa que me deixa chateado é agressão a natureza. Após uma parada desci e tentei registrar aquele episodio, mas o “calibre” não alcançava tal destruição. Tirei algumas fotos porem só uma ficou razoável, parecia que a câmera se recusou a dar qualidade à infeliz imagem. 

Talvez tenha sido um acidente, alguém colocou fogo com um objetivo e ele se propagou “o vento levou”, mas a realidade é quase cotidiana e vista quase sempre em áreas rurais. Tentei compreender um pouco a motivação deste tipo de ação. Conversei com alguns experientes amigos da roça onde me disseram que a prática é antiga e na maioria das vezes a criação de gado é um dos principais fatores. 

Embora o tema seja diariamente discutido em todo planeta parece que os nossos ouvidos precisam de atendimento otorrino, “uma lavagem”. Dentro desse contexto nos acostumamos vê as coisas de fora. Irará não foge a realidade e assim como em toda parte do nosso imenso Brasil vem sofrendo com a destruição do seu Patrimônio Natural. O crescimento deveria moldar-se na sustentabilidade, no entanto mudar essa cultura secular não é tão simples. 

Associei alguns momentos de vivencia e alguns fatos que nos coloca a todo instante nesta temática. Lembrei das historias relatadas por meu avô Januário quando me contava aspectos geográficos da região principalmente da nossa bacia hidrográfica. O Velho me disse que nossos Rios e Riachos ainda não acabaram definitivamente por conta da mão de Deus. O desmatamento das margens é a gota d’água. Jilú sempre me diz: “Meu filho o olho d’água não quer vê o olho do sol”. Outro dia exemplificou dizendo: “Fique meio dia olhando sem parar para o sol pra vê se você agüenta”. São simples frases mas que estão relacionadas aos acontecimentos. 

Jilú: “Meu filho o olho d’água não quer vê o olho do sol”


A preservação das nascentes em toda sua extensão já seria um recomeço. Outros caminhos devem ser estudados, preservar muitas vezes se resume a apenas não interferir. Meu avô tem apenas uma pequena propriedade, mas sempre manteve um pedacinho de Mata, segundo ele é bastante útil não só para os animais que “precisam se esconder”, mas para utilização da mesma. 

Outro dia uma observação me fez refletir. Fui à casa do meu pai e lá reparei algumas gaiolas com pássaros e falei: “porque o senhor não solta esses passarinhos?”. A resposta foi imediata: “Não, se soltar vão caçar e matar tudo, eles não deixam nada”. A resposta um tanto contraditória levara-me a crer que no pensamento dele os passarinhos estavam mais bem protegidos presos. Recordei de alguns relatos de que meu pai gostava de mato e era um caçador. Fiquei pensativo, em seguida vi o meu pequeno irmão nos braços da mãe, ali estava o futuro.  

A todo o momento nos deparamos com situações pertinentes ao assunto. É triste ver nas feiras a comercialização de pássaros. A quem goste de criar, é também uma questão de costume, mas deveria ter limites, ninguém gosta de viver atrás de grades. 

Tempos atrás me encantei com a labuta de algumas famílias que vinham de longe comercializar Mangaba na Feira de Irará. Passei a conhecer o modo de vida de algumas que apresentavam características Quilombolas e têm na extração da Mangaba um complemento na renda. Chamou-me a atenção quando me relataram a luta para conseguir a fruta e que a extração estava cada vez mais escassa, pois estavam acabando com as arvores de Mangabeira para dar lugar à plantação de Eucaliptos nas Regiões de Água Fria e Ouriçangas. Assim o velho ditado “vestir um santo e descobrir outro” parece ser o caminho para alguns. 


"a labuta de algumas famílias 
que vinham de longe comercializar Mangaba 
na Feira de Irará"

De toda sorte é certo que a Mãe Natureza necessita ter mais filhos e para isso temos que fazer a nossa parte. É preciso participar mais, o dialogo talvez seja a melhor escolha. As próximas gerações devem ser preparadas, a Família e a Escola terão papel fundamental nas mudanças neste mundo de regeneração.

Mercinho, 09/03/2012

GALERIA

NATUREZA DE IRARÁ - IMAGENS DE EMERSON NOGUEIRA - MERSINHO:  








4.3.12

Fernando Sant’Anna, a parte e o todo


Fernando Sant’Anna nos anos 1980 

Em Irará, os comentários da morte de Fernando Sant’Anna não devem ter sido diferentes dos de quando ele era vivo. “É daqui, mas fez o que pela terra?”, muitos podem ter questionado. 

Sim. A reposta pode ser dada com citações de algumas obras ou realizações na cidade. No evento no qual lhe foram prestadas homenagens, acontecido em maio de 2011, algumas delas foram citadas. 

Entre as mencionadas, a Rodovia BA 084, a construção da grande agência dos Correios e Telégrafos, a vinda do telefone, além de outras conquistas para o município, nas quais Fernando teria participação. 

Mas, pensar assim é pensar pequeno. É só olhar para a parte e esquecer o todo. É pensar no varejo. E Fernando Sant’Anna era da política do atacado. Um daqueles, hoje raros, homens públicos com atenção dedicada, principalmente nos seus exercícios parlamentares, às grandes questões nacionais e da humanidade.  

Por isso, melhor do que citar benfeitorias em Irará, conquistadas com alguma influência de Fernando Sant’Anna, melhor seria dizer que o ex-deputado não se limitou à sua cidade natal, como faria qualquer político provinciano.  A sua batalha era pela pátria como um todo. 

A luta se dava em campos como o da defesa pela soberania nacional, entre outros. Fernando Sant’Anna, nosso conterrâneo, foi um dos articulistas da grande campanha nacionalista “O Petróleo é Nosso”, ocorrida na década de 1950. 

Aquela empreitada contribuiu para o nascimento da Petrobras. Com a gênese de uma petrolífera nacional veio também o direito dos próprios brasileiros explorarem e comercializarem o ouro negro, antes adormecido sob o sagrado solo desta nação. 

E a Constituição de 1988 e todas as suas garantias democráticas? Fernando foi um Deputado Constituinte e participou ativamente da elaboração da Carta, considerada umas das mais avançadas do mundo. Se suas prerrogativas são desrespeitas, isto é outro assunto.  

Agora é história. Chegou o dia de Fernando Sant’Anna ser atingido pela “fatalidade cósmica”*. Fica o seu exemplo do fazer política. A política do dialogo com o discordante. A política dos ideais. 

A grande política, em contraposição a pequenez desta que se tem visto por aqui. Onde tribunas são ocupadas para “diz que...”. Onde cada qual parece mais preocupado em cuidar de suas partes e particularidade. Onde os partidos são repartidos. 

É claro, a toda regra há exceções. Vez em quando um cometa passar por esta província e deixa por aqui uma centelha idealista. Algum “maluco beleza” qualquer, sabedor de que a parte contém o todo, pois, “a letra A tem meu nome”, como cantava Raul. 


* O termo foi usado por Fernando Sant’Anna para se referir à morte quando o entrevistei em 2005 para a escrita de monografia sobre a militância de Aristeu Nogueira. 

** Imagem - Fernando Sant’Anna nos anos 1980 em foto da Galeria dos Iraraense Notáveis – Acervo da Casa da Cultura de Irará