9.11.15

Arte de rua, mídia e mendicância




Lembro Machado de Assis: 

“Ela era bonita, mas era coxa. Por que coxa, se bonita? Por que bonita, se coxa?” 

Pulo das lembranças do celebre Memórias Póstumas de Brás Cubas para a página A7 do A TARDE de sexta, 30/10/2015. 

A notícia “Jovem toca sax na rua para pagar a faculdade” apresenta uma aspa atribuída ao administrador Gustavo Correia, 44 anos. 

“É curioso, porque a gente, que reside aqui de Salvador, não está habituado a conviver com pessoas se apresentando nos espaços públicos. O rapaz é, de fato, corajoso. Ele está de parabéns”.

É totalmente possível ao administrador, “residente em” ou “residindo de”, falar de uma Salvador diferente da vista por mim. Ao contrário dele, na soterópolis por onde trânsito, vejo pessoas “se apresentando nos espaços públicos”. 

Malabaristas nos sinais; músicos, atores, palhaços e poetas nos ônibus; estátuas vivas nas praças... Muitos que talvez nunca tenham merecido sequer uma nota, quanto mais ter foto estampada na capa do jornal, como o rapaz do sax. 

Lembro-me agora de um senhor. Cabelos alorados, sotaque arrastado num tipo meio confuso de portunhol. Ele já entrou algumas vezes em ônibus nos quais eu era passageiro. 

Com um sax meio desbotado, certamente pela ação do tempo, toca músicas internacionais conhecidas e manda o seu recado.  Certa feita, o vi se apresentando na Cantina da Lua, de Clarindo Silva, lá no Pelô. Nunca o vi na capa do jornal. E, quem sabe, talvez nunca tenha sido citado por qualquer um diário...  



De cara, penso que A Tarde perdeu uma oportunidade de contextualizar sobre arte de rua em Salvador. E, ainda por cima, pareceu se resumir e assumir para si o discurso de uma única fonte. 

Diante do quadro fiquei a me perguntar se, ao produzir esta notícia, o jornal não se valeu do critério “mendigata” ou “mendigato” de noticiabilidade. 

Seria este rapaz do sax, estudante universitário, com formação em filarmônica, tocando música clássica e boa aparência, “um artista”, enquanto os outros seriam apenas “pedintes”? 

"E porque ele se apresenta na rua, se bem afeiçoado? Porque bem afeiçoado, se apresenta na rua?" 

De repente é o que se perguntam os passantes daquela avenida em frente à sede do jornal. Transeuntes e prováveis fonte única de opinião a ser considerada pelo periódico. 

PS 1 - Emissoras de rádio reproduziram a notícia da mesma forma deslumbrada e descontextualizada do jornal.

PS 2 – Já escrevi aqui nesse blog sobre um sanfoneiro que se apresenta no ônibus e vendia seus CDs – Artista de Atitude no Buzu