25.5.17

Vida e arte em mímesis

Chico Buarque tem obras de referência sobre o cotidiano brasileiro.
Reprodução Roma Pra Você

Na canção “Cotidiano”, Chico Buarque, como os versos e o próprio título sugere, fatalmente representa a vida cotidiana dos personagens da obra.

Por outro lado, podemos também pensar o inverso. Alguém, de repente, ao se inspirar na canção de Chico, passou a adotar o costume de todo dia sacudir @ companheir@ às seis horas da manhã e beijá-l@ com a boca de hortelã.

Daí é um passo curto para caímos em um dilema de casualidade, ao estilo do “quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?”.

No caso da canção de Chico, e seu inverso sugerido acima, o dilema é: “a vida imita a arte ou o contrário?”.  

O amor, o amor romântico tal como o conhecemos, teria sido uma invenção da literatura, depois aperfeiçoada pelo cinema. Já ouvi alguém dizer isso...

Afinal, nem sempre os casais e as famílias foram formadas com base naquele amor. Conforme nos mostra a história da humanidade, relações outras costumavam prevalecer na constituição dos grupos familiares.



Glória Pires viveu "Maria de Fátima" principal vilã da novela Vale Tudo (1988/89) - Rede Globo. No final da trama a megera saiu do Brasil e casou-se com um príncipe italiano. 
Reprodução estrelando.com.br

A inversão de rota talvez sirva também para o “e foram felizes para sempre”. Afinal, a busca incessante pela “felicidade”, e pelo nosso imaginado tipo de “felicidade”, certamente não era a grande meta dos nossos antepassados.

É fácil imaginar a mãozinha dada pela literatura, o cinema, a publicidade, etc, para a reconfiguração dos sonhos de felicidade. A ponto de muitos pagarem pela "felicidade" "contida" numa garrafa com design “irresistível”...

Para os mais céticos, finais felizes só mesmo na ficção. A incidência do “foram felizes pra sempre” deve ter motivado esta crença. De tanto “co-incidir” a indústria cultural resolveu mudar um pouco a rota. Então a tragédia deixou de ser “privilégio dos intelectuais” para ocupar os folhetins.

Nas novelas da TV incidiram vilões de destaque terminando a trama “de boa” (como se diz aqui na Bahia), e protagonistas com personalidade dúbia (heróis/vilões), tendo em si qualidades e defeitos antagônicos.

“Isso é apenas pura reprodução da realidade”, defendem os realistas.

“Mas a vida já tem tanta miséria, porque ver miséria na novela também?”, questiona os amantes da ficção ficcional (perdão pela redundância).

Mas, o que é conto de fadas e o que é realidade?




Depoimento de James Hetfield em cena do Documentário Some Kind Of Monster
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Por volta do minuto 63 do documentário Some Kind of Monster, após sair de uma rehab, James Hetfield, frontman do Metallica, faz uma fala reflexiva.

Após exibir cenas de James buscando a filha no balé, o documentário mostra um depoimento dele sobre sua “previsível” vida anterior.

Diz o vocalista: “Acordava no dia seguinte em alguma cama e não sabia quem estava ao meu lado, estava bêbado, de ressaca e tinha um show a fazer. O resultado é igual. Sabe como é? A vida agora é empolgante. Não se sabe o que vai acontecer quando você está de cara limpa, vivendo o aqui e agora”.

Em geral, costumamos buscar a empolgação em algum entorpecente. E, pelo seu depoimento, James Hetfield parece ter encontrado o “grande barato” numa vida familiar cotidiana.

Quantos, mundo a fora, não sonham em viver o “conto de fadas” atribuído ao mundo artístico? Shows, aplausos, curtição, bebedeira e muito sexo...


House of Cards e Netflix comentam crise política do Brasil. 
Reprodução: Twitter

Diante da chamada crise política do Brasil atual, o perfil do twitter do House Of Cards, série do Netflix, certamente inspirada no modus operandi da política estadunidense, desabafou: “tá difícil competir”. E o perfil da Netflix interagiu: “Eu até tentaria, mas se eu reunisse 20 roteiristas premiados não conseguiria chegar numa história a essa altura”.

Ao longo da nossa história, envolta a fábulas, estória oral, teatro, literatura, cinema, entre outras manifestações artísticas, vida e arte tem vivido em mímesis. É uma imitando a outra. Elas se misturam, se provocam, se amam e se enroscam.

Para uns, vale a expectativa da felicidade e do casamento perfeito no final entre o mocinho e a mocinha. Para outros, “não tem beijo final e não vai ter happy end”.

RM>



9.5.17

O “vai dar merda” e o “erramos” caberiam na mochila

Ricardo Boechat, âncora da BandNews FM, costuma dizer que os governos deveriam ter um departamento, uma secretaria ou um ministério responsável pelo “vai dar merda”.

O órgão teria como missão chamar atenção do gestor público e antever situações. Vislumbrar problemas que, diante do consumir de tarefas e responsabilidades cotidianas da função pública, estivessem ocultos, mas fossem óbvios.

Boechat tem razão, mas acredito ser exagerada a sua proposta. Talvez não seja necessário um organismo, mas tão somente um simples e único servidor. 

Alguém talhado para ser o lembrador do óbvio. Para ser o “índio revelador” como na canção de Caetano, da qual tomei de empréstimo a dualidade “oculto x óbvio” mencionada no parágrafo anterior.

Chefes, gestores, pessoas em posição de comando dificilmente aceitam “índios” como assessores. Os motivos são diversos, certamente o mais assertivo é que “índios”, em geral, são mais dedicados à natureza da sua missão do que ao “ficar de boa com o chefe” da tribo.

Maquiavel, em sua obra mais conhecida, diz que um dos graves erros do Príncipe é cercar-se de bajuladores. Um puxa-saco, bem diferente de um “índio”, jamais alertaria o Rei da sua nudez visível. O medo de desagradar o soberano falaria mais alto. Assim, o Rei seguiria nu até ser apontado por uma criança travessa e virar bobo da corte.

Criança dentro da mochila (Reprodução Facebook/Correio24Horas)

O noticiário sobre o caso das mochilas grandes distribuídas, pela prefeitura de Jequié, para as pequeninas crianças da creche municipal nos leva a esta reflexão: Será que por lá faltou o assessor do “vai dar merda”?

Além disto, pelo percebido em notícia do Bocão News, as respostas da prefeitura, por meio da Secretaria Municipal de Educação, e do secretário, em “desabafo” no Facebook, convidam a outra dúvida: Será que faltou assessor de comunicação ou o mesmo não foi consultado?

As repostas não parecem adequadas. Não se vê, em momento algum, um “erramos”. Príncipes em geral (não sei se é o caso dos gestores de Jequié, pois não os conheço) têm dificuldades de reconhecer erros.

A resposta da prefeitura, conforme noticiada, diz que “a atitude de também distribuir as mochilas [grandes] para os alunos das creches [foi] para evitar qualquer tipo de discriminação”.

No argumento acima reside um grande equívoco para gestão pública. Afinal, conforme já ouvi Orman Ribeiro, conhecido professor de Direito Constitucional, dizer: “a ideia de igualdade não é a proibição absoluta de qualquer discriminação”. Uma gestão pública precisa saber tratar os desiguais na proporção de suas desigualdades.


Ilustração para uma desigualação de desiguais - Reprodução

No caso em questão era preciso mesmo “discriminar”, ou seja, “diferenciar”. Diferenciar os alunos grandes dos pequenos e entregar a cada um a mochila adequada a seu biótipo e não o modelo de mesmo tamanho a todos. Se não tinha mochila apropriada para os pequenos nesta oportunidade, que se esperasse por uma próxima.

O “desabafo” do secretário foi infeliz também. Pelo texto [no final da notícia], é difícil entender o argumento, atribuído ao Ministério da Saúde, de que “uma criança não pode carregar mais que 10% do seu peso” para justificar uma mochila com potencial para carregar 100% ou mais.

Do mesmo jeito, o texto ficou estranho quando se pergunta ao público: “querem afirmar que os pais de hoje não estão servindo nem pra carregar a mochila dos seus filhos?”.

Será que as mochilas foram distribuídas para serem usadas pelos pais das crianças? Não é o que mostra a imagem...

Crianças com as mochilas grandes nas Costas (Reprodução/Bocão News) 

As emendas saíram tão ruins quanto o soneto. A julgar pelas respostas, faltou um “índio”. Alguém capaz de identificar os “sinais de fumaça” da situação. Um profissional de comunicação para, nestes tempos de exposição pública, potencializada pela mídias digitais, orientar os gestores como se posicionar diante dos fatos.

No final de sua postagem, o secretário usa trecho de canção dos Novos Baianos para dizer que “ninguém vê minha sacola”. Aqui mais uma infelicidade. As sacolas foram fotografadas e as imagens foram publicadas na internet, sendo vistas e retransmitidas até por telejornais da região sudeste do país.


Assim, “todo mundo” viu a sacola. A sacola é grande. É tão grande que cabe uma criança dentro. E caberia até o “vai dar merda” e o “erramos”. Só não cabe resposta descabida.