16.7.07

A ética entre estéticas

Parece moda. Numa ou noutra temporada o noticiário vem carregado de fatos envolvendo fraudes e corrupção. Os telejornais começam como se fossem metralhadoras atirando aos quatro cantos uma carga de atrocidades. Da sua poltrona, o espectador, já acostumado a ouvir falar tanto de roubalheira, nem mais se assusta como deveria, ou ao menos, como seria esperado.
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É sintomático estarmos vivendo o efeito do que em jornalismo costuma-se chamar “Disfunção Narcótica”. Em outras palavras, diante um bombardeio de notícias de roubo, é como se o indivíduo ficasse sob efeito de algum narcótico e, assim “dopado”, não mais se indignasse com os atos arbitrários. De tal forma, o sentimento e a disposição com relação à boa conduta vão ficando em segundo plano.

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Rui Barbosa chegou a prever que de tanto ver triunfar as más ações o homem chegaria a rir da honrar e ter vergonha de ser honesto. A preocupação do jurista com o comportamento ético do ser humano parece alertar para um tempo de inversão de valores. As ações que antes seriam motivo de orgulho se transformariam em razão de vergonha. A ética então deixaria de ser uma prática e, ainda que fosse uma regra normativa por algum tempo, depois tenderia à completa desaparição.
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Sensações como orgulho ou vergonha, nós fazem perceber que a ética estar permeada de componentes estéticos. De tal modo, a prática ética é também um sentimento estético, do campo da sensibilidade do indivíduo. Entre outras assertivas, o receio da opinião pública ou a possibilidade de decepcionar pessoas do seu círculo de convivência é um dos principais motivos que impedem o “sujeito normal” de cometer uma atrocidade. É o popular “vergonha na cara” que, pelo visto, anda faltando a muita gente por aí.
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Herman Parret considera que: “justificamos o valor da prática humana, das relações intersubjetivas, da produção discursiva, apelando para categorias éticas que, por sua vez só podem ser legitimadas por categorias estéticas”
[1]. E mais adiante complementa: “É a categoria estética do sensu communis que nos serve de valoração legitimadora de toda a prática intersubjetiva da vida quotidiana”[2]. Este tal “sensu communis” aqui entendido, de acordo com a visão de Kant, como uma “capacidade de julgar que, em sua reflexão, considera (a priori) em nosso pensamento o modo como todas as outras pessoas representam uma determinada coisa”[3].
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Na busca pela “valoração legitimidadora” para os seus atos, o indivíduo tende a agir de forma similar aos outro sujeitos sociais, ou seja, priorizar “o modo como todas as outras pessoas representam”. Aí é que, para usar um termo do dito popular, a “porca torce o rabo”, pois, sendo um ser social, não é da natureza do homem viver isolado. E como ninguém quer “estar por fora”, tal o qual se diz na gíria, a intenção é fazer da mesma forma que todos os outros (sensu communis) fazem. Logo, o honesto se trans-forma no otário, aquele que “não soube aproveitar as oportunidades”.
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Assim, a inversão dos valores vai atuando desde a formação do pequeno cidadão. As crianças são estimuladas à competição, ao consumismo e ao uso de comportamentos dignos de reprovação. Não é difícil ver pais incentivando filhos a falarem palavrões para outras pessoas e depois rirem da sonoridade causada por um vocabulário em construção. Diante do riso coletivo, a criança sente aprovação geral (sensu comunnis) do ato e entende a sua fala como digna de elogio.
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Comportamento diferente teve a mãe que vangloriou um gesto nobre do filho. O fato da criança ter corrigido o troco errado de um caixa de supermercado foi motivo para que o menino tivesse ouvido sucessivos elogios da genitora entre as amigas dela. Em busca de novas “condecorações” diante de sua mãe (representação maior para uma criança) e do público (sensu communis), o garoto torcia pelo erro do troco toda vez que ia ao supermercado, somente para poder praticar a sua boa ação e ganhar elogios.
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Os casos descritos acima, são apenas exemplos simplórios de contribuições para a formação de valores pessoais. É correlato imaginar que a criança do segundo exemplo, diante de atitudes como a descrita, cresceria tendo a honestidade e a coerência como valores a serem perseguidos e admirados socialmente. Quando adulto teria por principio agir honestamente nas suas ações. Consequentemente teria dificuldades e sofreria muito para viver numa sociedade, onde os valores estão em processo de inversão.
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Entre outros, os valores estéticos apresentam-se com freqüência nesta rota invertida. Confundem-se entre o termo introduzido por Baumgarten para designar Estética como a “ciência (filosófica) da arte e do Belo”[4] e a nomenclatura com vista constante em letreiros anunciando centros de “beleza e estética”. O primeiro termo se apresenta como a “doutrina do conhecimento sensível”[5], estando ligado à sensibilidade apontada noutros pontos deste texto. O outro, diz respeito a beleza efêmera do mundo das aparências, do fugaz, da moda.
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É nesta segunda perspectiva estética que a ética têm aparecido no noticiário. Principalmente quando surgem com maior freqüência os casos sobre desvio de dinheiro público para beneficio particular. “Ética” passar a ser usada como a palavra da moda. Nos discursos políticos, nos programas de debates televisivos, no pátio da escola. De repente, todo mundo tem soluções mágicas e formulas prontas para o exercício da ética. No entanto, é na própria vivência do dia a dia que a mesma não é exercitada. O velho “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”.
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Se os indivíduos ainda pensam em solucionar problemas éticos, é preciso agir na própria sensibilidade. Para isso é importante o papel da família (como no exemplo descrito), da escola, do governo e da mídia, entre outros agentes sociais. É necessário ir na contra-mão da disfunção narcótica. Mostrar, valorizar e vangloriar práticas e comportamentos éticos. A intenção é que o indivíduo sinta prazer e orgulho de agir com responsabilidade para com outro. E que os “bons meninos” não tenha dificuldades para sobreviver.
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Pode até soar estranho falar em “Ética” neste momento em que as manchetes, diferente de outrora, estão um pouco escassas de escândalos políticos. Época em que o termo “Ética” não está na moda. Não obstante, a intenção é esta mesmo. Valer-se de um assunto “démode”, para ter possibilidade de falar ao sensível. Direto à sensibilidade e não a aparência efêmera.

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[1] PARRET, Herman. A estética da comunicação, p 187. Tradução de Roberto Pires de Oliveira. Ed: Unicamp. SP 1997.
[2] Idem
[3] Idem, p. 194, 195.
[4] ABBAGNANO, Nicola. 1901 - 2ed, pag. 348. Tradução coordenada e revisada por Alfredo Bosi. Ed. Mestre Jou - SP. 1982.
[5] Idem.
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Ilustração por Gabriel Ferreira

Escrevi este texto especialmente para o jornal FUXICO, uma publicação do Núcleo de Investigações Transdiciplinares - Departamento de Educação – UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana. O mesmo foi publicado na Edição Nº 9 – Ano V – Dezembro – Abril de 2007, pág. 5 e 6.

A escrita se deu num curto espaço de tempo sem escândalos de corrupção no Brasil. Logo em seguida, começou a aparecer os juizes que vendiam sentença, a Gautama, Renan, Roriz...

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