15.12.17

O vice do Flamengo ainda me faz rir

Flamengo pousa para foto, no Maracanã (13/12)
Foto Gilvan de Souza/ Flamengo 

A repercussão ocorrida nas ruas e nas mídias sociais durante todo dia de ontem, quinta (14), me levou a esta reflexão.  
“Impressionante como o vice é desprezado por aqui”.

Deve ser coisa de brasileiro.

O vice, como diz o ditado, é o primeiro depois de todos os outros, exceto o campeão. Chegar a uma final não é fácil e não é qualquer time que chega lá. Dezenas ficam pelo caminho.

Brasileiro não vê por aê. Parece esquecer os méritos.

Tenho a impressão de que se o Brasil tivesse goleado a Alemanha na semi-final da Copa de 2014, mas perdesse a final pelo placar de 1 X 0 para a Argentina, muitos torcedores brasileiros teriam sofrido mais e consideraria o “vexame” de ser vice pior do que o fatídico 7 X 1.

Mas confesso que acabei achando graça na sorte do Flamengo agora. Não pelo desfecho do campeonato para o clube e sua flanática torcida, mas pela repercussão.

Teve torcedor de time sem acesso a Libertadores há quase 30 anos se achando no direito de zoar o Flamengo. Logo ele que fez carnaval agora em 2017 diante da remota possibilidade, rapidamente frustrada, de chegar àquela competição continental.

Outro, que só chegou à pré-libertadores de 2018 graças aos serviços de quem aprendeu a ser técnico de futebol no Flamengo, também se achou no direito.

Detalhe, de 2000 pra cá, ele só viu o time dele na Libertadores da América três vezes. Nós flamenguistas vimos oito. E em 2018 estaremos lá novamente, direto na fase de grupos.

E este vice de carterinha do Mengão em diversas competições estaduais, quer se sentir em condições de nos zoar porque o Fla foi vice sulamericano. É muita falta de simancol.

Claro, queríamos o título, mas este vice-campeonato valeu. Valeu as emoções, valeu o aprendizado.

Reafirmamos a frase: “craque o Flamengo faz em casa”.

Saímos quase invictos, só perdemos o jogo de ida da final lá na Argentina. Uma partida na qual o Flamengo terminou em cima, pressionando o adversário.

Começamos a Sulamericana goleando. Nas quartas, munidos da raça rubro-negra, buscamos o empate em resultado adverso no Fla-Flu (um aí Jesus) no Maracanã. E nas semis, com a mesma raça, ganhamos em Barranquilla.

Comprovamos que somos mais que uma nação. Milhões nas embaixadas rubro-negras, nos bares, nos lares, por todo o Brasil e em outros países, de manto sagrado, torcendo muito.

Lembramos da pauta sobre a redução da capacidade de um Templo do futebol, de 200 mil para 60 mil espectadores, e tentativa de elitiza-lo.


Por essas e outras, diante da grandeza do Flamengo, este vice-campeonato me faz rir. Eu rio dos antis. Eles são a piada. 

24.11.17

O paradoxo quebrador da Heineken

Imagem: Reprodução

Gosto das peças com quebras de paradigmas e paradoxo. É atraente a inovação, a criação de algo pouco comum e diferente do costume. E também me enche os olhos a possibilidade de algo poder ser o seu contrário. 

Vejo estas situações acontecerem no comercial da Heineken, estrelado pelo ex-piloto de Formula 1, Jackie Stewart. 

A tradição da propaganda é endeusar o produto. Além de dizer ser o melhor, costuma falar que todos correm atrás dele e o desejam deliberadamente.

O comercial da Heineken, em primeiro plano, mostra algo aparentemente ao contrário da tradição propagandística. O filme apresenta a cerveja sendo diversas vezes negada por Jackie.

Não me recordo de nenhuma marca exibir uma peça para mostrar o seu produto tantas vezes recusado.

No entanto, olhando em volta, não há recusa. Nas entrelinhas, nos arredores e no final está o “pulo do gato”.

Jackie nega a cerveja, mas todos ao seu redor a saboreiam fartamente. E bebem sempre em momentos de alta descontração e celebração de vitória. Olha o subliminar...

A peça é produzida de modo tal que os movimentos da câmera e os closes no produto seduzem o espectador. Dá vontade de tomar uma. Não dá? Fala aê!

No comercial, Jackie nega a cerveja peremptoriamente nos tempos de piloto, mesmo após as corridas, e na maturidade, em uma festa. 

Na saída da festividade vem a cereja do bolo gostoso que é este comercial. Jackie justifica a negativa: “Ainda dirijo”.

A cena antecipa a apresentação da mensagem do comercial: “when you drive, never drink”.

As duas palavras “ainda dirijo”, além de largar a deixa para a mensagem, serve também como testemunho da responsabilidade de Jackie Stewart ao longo dos anos, como piloto e como cidadão.

Destaca-se ainda a forma como a cerveja é recusada pelo protagonista durante todo o vídeo. Ele nega com um sorriso simpático de quem parece dizer: “eu adoraria, mas não posso...”.

É um comercial de cerveja, no qual a cerveja é negada e ao mesmo tempo tem o consumo altamente incentivado. É meio paradoxal e completamente bem feito.

Veja comercial: 



Leia notícia do G1 sobre o comercial

4.9.17

A esportiva é desconsiderada até no esporte



 Goleiro sentiu-se ofendido com editorial do Extra

Onde começa e onde termina a linha limítrofe entre crítica e ofensa?

A divisão é muito tênue. E, talvez por isso, não raro, há quem perceba em toda crítica uma ofensa grave.

Matéria do Uol aborda a repercussão e a resposta do goleiro Alex “Muralha”, do Flamengo, após editorial do jornal esportivo Extra, e apresenta a integra dos escritos.   

O trecho abaixo parece resumir o sentimento da resposta do guarda-metas:

“Isso está longe de ser uma brincadeira. A palavra é humilhação, é execração pública”.

Bateu a curiosidade e segui na leitura da matéria até chegar na reprodução do editorial do Extra.

Jornal - O editorial diz que, a partir das mais recentes atuações do goleiro, o jornal não vai mais chamá-lo pelo apelido, “Alex Muralha”, mas sim pelo nome: Alex Roberto.

(Comportamento já adotado por torcedores do Flamengo no twitter há um tempo)

Na opinião do jornal, o goleiro não merece mais a alcunha de “Muralha” pois desmoralizou o apelido “levando um frango no jogo contra o Paraná pela Primeira Liga. Além de ter errado 100% dos lados nas cobranças de pênaltis”.

O jornal alega que assim o faz “em nome da precisão jornalística” e promete rever sua decisão caso Alex Roberto faça por merecer o apelido de “Muralha” novamente.

Voltei a ler o editorial e li outra vez procurando a “humilhação” e a “execração pública”. Não encontrei. Será miopia minha?

E outra pergunta: um goleiro que toma frango e erra todos os lados em seis pênaltis merece ser chamado de... “Muralha”?

O jornal sequer inventou um apelido novo em homenagem a fase atual do goleiro, apenas comunicou que passará a chamá-lo pelo nome de batismo.

Na resposta do goleiro ao jornal há ainda um possível temor:

“O termo ‘vulgo’, que citam no texto a meu respeito, é normalmente usado para designar bandido, e isso causa constrangimento. É um fato que pode até incitar a violência...”

Para mim, o trecho acima quis forçar um pouco a barra.

No editorial do Extra, o “vulgo” não é empregado para se referir ao goleiro em sí. O termo aparece como uma espécie de sinônimo para “apelido”, quando diz que “Alex Roberto desmoralizou o vulgo”, ou seja desmoralizou o apelido de “Muralha”. 

Torcida - Claro, o temor do goleiro não é de todo despropositado. A história registra diversos exemplos de complicações nas relações entre jogadores em má fase e torcida. Alguns torcedores (se é que podem ser chamados assim) partem mesmo para a agressividade.

No entanto, os jogadores, como ídolos e personagens centrais no palco do espetáculo chamado futebol, tem um local privilegiado e deviam, a partir desta condição, dar o exemplo e desestimular comportamento raivosos.

Desta forma, ao meu ver, o posicionamento mais adequado do goleiro Alex (Roberto ou Muralha) ou de sua assessoria de comunicação seria, ao invés de tentar revidar, rebater ou acusar o jornal, levar o caso na esportiva.

Eu proporia uma resposta mais ou menos nos termos abaixo:

Olá pessoal do jornal Extra!

Confesso ter ficado triste, ao ler o editorial da edição XXX, informando que vocês (por enquanto) não vão mais me chamar de Muralha. Triste porque ganhei esse apelido em reconhecimento a um trabalho de anos. De fato, vivo uma fase ruim, mas o que é uma fase diante de uma carreira repleta de momentos gloriosos? Não dá para julgar o trabalho de um goleiro por um jogo infeliz, não acham? Até porque sei que esta fase ruim passa logo. Então eu voltarei a ser o Muralha de sempre, o goleiro querido e admirado por todos vocês. Estou treinando e me esforçando bastante para corrigir falhas, aprimorar técnica e ser um profissional cada vez melhor. Aí vocês voltarão a me chamar de Muralha. Quem sabe uma muralha tão grande quanto a da China. E assim como o paredão chinês é diferenciado, ao ponto de ser visto até do céu, também serei percebido como um goleiro de destaque incontestável. Um goleiro Extra, tal e qual o jornal de vocês.

Um grande abraço!


Uma resposta nestes termos seria um jeito de aceitar a crítica, reconhecer o momento ruim e mostrar comprometimento e fé no futuro, além de ser uma forma de “levar na esportiva”.

Infelizmente, nestes tempos sombrios a esportiva tem sido desconsiderada até mesmo no esporte. O ódio está ganhando de goleada. E o futebol corre o risco de virar campo de batalha. No gramado, na arquibancada e na mídia.

RM>

17.7.17

Caminhos da roça

“Olha a chuva! Passou...”

A volta de um dia ensolarado, depois de uma semana chuvosa na capital baiana, lembrou-me o São João. A festa, tão esperada, agora está longe novamente. “Nem se despediu de mim”, chegou e saiu rapidinho.   

Demorada foi a viagem pra viver o São João. No período, quando centenas de milhares saem da capital para o interior da Bahia, o engarrafamento na BR 324 já está mais tradicional do que a fogueira.

Em meio ao “cardume”, formado pelas milhares de “sardinhas de lata”, estando eu (dentro de uma delas) a “navegar” lentamente naquele “rio negro” da Vasco Filho, a mente pescava pensamentos diversos e me fazia refletir a situação e suas causas.

Reflexões conduzindo a constatações obvias: “A Bahia só tem uma metrópole!”, comentei.

A soterópolis é a única cidade com mais de 1 milhão de habitantes do Estado. Ela já tem quase três vezes esta marca, enquanto o segundo maior município baiano (Feira de Santana) ainda não chegou a 700 mil.

E, vale destacar, 80% dos municípios da Bahia, assim como o meu torrão iraraense, não chegam aos 30 mil habitantes.

Tão desigual quanto a distribuição do povoamento é a repartição da produtividade econômica pelo território baiano. Para perceber o disparate desta, basta uma rápida olhada em um mapa disponível no sítio eletrônico da Secretária Estadual de Planejamento.


Mapa Territórios de Identidade - Reprodução

O Território Metropolitano de Salvador concentra 77,9% da arrecadação de ICMS (Imposto de Circulação de Mercadorias) prevista para o quadriênio 2016-2019.

O Portal do Sertão, onde quem reina é a princesa Feira de Santana, tem a segunda concentração, com distantes 4,68%. Na sequência vem o Território Litoral Norte e Agreste Baiano, onde Alagoinhas está localizada, com 4,36% da previsão de arrecadação do imposto.

Agora observem que todos os outros 24 Territórios de Identidade do Estado alternam-se em valores entre zero virgula alguma coisa (0,x) e um virgula qualquer tanto (1,y) de porcentagem da arrecadação estadual de ICMS. 

Salvador e cidades próximas são mais desenvolvidas. E as pessoas, como cantavam os Lampirônicos, são atraídas a capital para buscar o capital (e outras “cositas” mais). À procura de emprego, na caça por estudos, garimpando oportunidades, na luta pela sobrevivência...

Há muito se fala em desenvolvimento dos pequenos municípios. Fixação do homem no campo, melhorias na infraestrutura das cidades menores, surgimento de outras metrópoles no Estado, etc.

Muitos defendem a atração de indústrias para o desenvolvimento das cidades menores. Pregam a liberação de recursos e concessões diversas para seduzir empreendimentos fabris, médios ou pequenos, a instalarem unidades no interior. 

A medida já tentada em alguns lugares foi como ouro de tolo. As unidades chegaram, levaram alguns subempregos e tiraram seus lucros. Depois, por qualquer tendência econômica, fecharam as portas e deixaram um cenário de abandono e desemprego. Aí Tiriricou: “pior do que tava, ficou”.

Urge o encontro de um caminho para o desenvolvimento do interior. Um rumo guiado por estratégias lastreadas pelo potencial dos próprios municípios. Um horizonte destinado a prosperidade equitativa da Bahia. Um norte para termos geração de renda espacialmente distribuída em nosso estado.

Naquele 23 de junho, véspera do São João, a minha constante vontade de ver estes caminhos percorridos gritavam em meus pensamentos enquanto eu tomava o meu “caminho da roça”. 

25.5.17

Vida e arte em mímesis

Chico Buarque tem obras de referência sobre o cotidiano brasileiro.
Reprodução Roma Pra Você

Na canção “Cotidiano”, Chico Buarque, como os versos e o próprio título sugere, fatalmente representa a vida cotidiana dos personagens da obra.

Por outro lado, podemos também pensar o inverso. Alguém, de repente, ao se inspirar na canção de Chico, passou a adotar o costume de todo dia sacudir @ companheir@ às seis horas da manhã e beijá-l@ com a boca de hortelã.

Daí é um passo curto para caímos em um dilema de casualidade, ao estilo do “quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?”.

No caso da canção de Chico, e seu inverso sugerido acima, o dilema é: “a vida imita a arte ou o contrário?”.  

O amor, o amor romântico tal como o conhecemos, teria sido uma invenção da literatura, depois aperfeiçoada pelo cinema. Já ouvi alguém dizer isso...

Afinal, nem sempre os casais e as famílias foram formadas com base naquele amor. Conforme nos mostra a história da humanidade, relações outras costumavam prevalecer na constituição dos grupos familiares.



Glória Pires viveu "Maria de Fátima" principal vilã da novela Vale Tudo (1988/89) - Rede Globo. No final da trama a megera saiu do Brasil e casou-se com um príncipe italiano. 
Reprodução estrelando.com.br

A inversão de rota talvez sirva também para o “e foram felizes para sempre”. Afinal, a busca incessante pela “felicidade”, e pelo nosso imaginado tipo de “felicidade”, certamente não era a grande meta dos nossos antepassados.

É fácil imaginar a mãozinha dada pela literatura, o cinema, a publicidade, etc, para a reconfiguração dos sonhos de felicidade. A ponto de muitos pagarem pela "felicidade" "contida" numa garrafa com design “irresistível”...

Para os mais céticos, finais felizes só mesmo na ficção. A incidência do “foram felizes pra sempre” deve ter motivado esta crença. De tanto “co-incidir” a indústria cultural resolveu mudar um pouco a rota. Então a tragédia deixou de ser “privilégio dos intelectuais” para ocupar os folhetins.

Nas novelas da TV incidiram vilões de destaque terminando a trama “de boa” (como se diz aqui na Bahia), e protagonistas com personalidade dúbia (heróis/vilões), tendo em si qualidades e defeitos antagônicos.

“Isso é apenas pura reprodução da realidade”, defendem os realistas.

“Mas a vida já tem tanta miséria, porque ver miséria na novela também?”, questiona os amantes da ficção ficcional (perdão pela redundância).

Mas, o que é conto de fadas e o que é realidade?




Depoimento de James Hetfield em cena do Documentário Some Kind Of Monster
No ícone da engrenagem no youtube é possível ver legenda em português. Vá em Legendas/ Traduzir Automaticamente/ e escolher o idioma.

Por volta do minuto 63 do documentário Some Kind of Monster, após sair de uma rehab, James Hetfield, frontman do Metallica, faz uma fala reflexiva.

Após exibir cenas de James buscando a filha no balé, o documentário mostra um depoimento dele sobre sua “previsível” vida anterior.

Diz o vocalista: “Acordava no dia seguinte em alguma cama e não sabia quem estava ao meu lado, estava bêbado, de ressaca e tinha um show a fazer. O resultado é igual. Sabe como é? A vida agora é empolgante. Não se sabe o que vai acontecer quando você está de cara limpa, vivendo o aqui e agora”.

Em geral, costumamos buscar a empolgação em algum entorpecente. E, pelo seu depoimento, James Hetfield parece ter encontrado o “grande barato” numa vida familiar cotidiana.

Quantos, mundo a fora, não sonham em viver o “conto de fadas” atribuído ao mundo artístico? Shows, aplausos, curtição, bebedeira e muito sexo...


House of Cards e Netflix comentam crise política do Brasil. 
Reprodução: Twitter

Diante da chamada crise política do Brasil atual, o perfil do twitter do House Of Cards, série do Netflix, certamente inspirada no modus operandi da política estadunidense, desabafou: “tá difícil competir”. E o perfil da Netflix interagiu: “Eu até tentaria, mas se eu reunisse 20 roteiristas premiados não conseguiria chegar numa história a essa altura”.

Ao longo da nossa história, envolta a fábulas, estória oral, teatro, literatura, cinema, entre outras manifestações artísticas, vida e arte tem vivido em mímesis. É uma imitando a outra. Elas se misturam, se provocam, se amam e se enroscam.

Para uns, vale a expectativa da felicidade e do casamento perfeito no final entre o mocinho e a mocinha. Para outros, “não tem beijo final e não vai ter happy end”.

RM>



9.5.17

O “vai dar merda” e o “erramos” caberiam na mochila

Ricardo Boechat, âncora da BandNews FM, costuma dizer que os governos deveriam ter um departamento, uma secretaria ou um ministério responsável pelo “vai dar merda”.

O órgão teria como missão chamar atenção do gestor público e antever situações. Vislumbrar problemas que, diante do consumir de tarefas e responsabilidades cotidianas da função pública, estivessem ocultos, mas fossem óbvios.

Boechat tem razão, mas acredito ser exagerada a sua proposta. Talvez não seja necessário um organismo, mas tão somente um simples e único servidor. 

Alguém talhado para ser o lembrador do óbvio. Para ser o “índio revelador” como na canção de Caetano, da qual tomei de empréstimo a dualidade “oculto x óbvio” mencionada no parágrafo anterior.

Chefes, gestores, pessoas em posição de comando dificilmente aceitam “índios” como assessores. Os motivos são diversos, certamente o mais assertivo é que “índios”, em geral, são mais dedicados à natureza da sua missão do que ao “ficar de boa com o chefe” da tribo.

Maquiavel, em sua obra mais conhecida, diz que um dos graves erros do Príncipe é cercar-se de bajuladores. Um puxa-saco, bem diferente de um “índio”, jamais alertaria o Rei da sua nudez visível. O medo de desagradar o soberano falaria mais alto. Assim, o Rei seguiria nu até ser apontado por uma criança travessa e virar bobo da corte.

Criança dentro da mochila (Reprodução Facebook/Correio24Horas)

O noticiário sobre o caso das mochilas grandes distribuídas, pela prefeitura de Jequié, para as pequeninas crianças da creche municipal nos leva a esta reflexão: Será que por lá faltou o assessor do “vai dar merda”?

Além disto, pelo percebido em notícia do Bocão News, as respostas da prefeitura, por meio da Secretaria Municipal de Educação, e do secretário, em “desabafo” no Facebook, convidam a outra dúvida: Será que faltou assessor de comunicação ou o mesmo não foi consultado?

As repostas não parecem adequadas. Não se vê, em momento algum, um “erramos”. Príncipes em geral (não sei se é o caso dos gestores de Jequié, pois não os conheço) têm dificuldades de reconhecer erros.

A resposta da prefeitura, conforme noticiada, diz que “a atitude de também distribuir as mochilas [grandes] para os alunos das creches [foi] para evitar qualquer tipo de discriminação”.

No argumento acima reside um grande equívoco para gestão pública. Afinal, conforme já ouvi Orman Ribeiro, conhecido professor de Direito Constitucional, dizer: “a ideia de igualdade não é a proibição absoluta de qualquer discriminação”. Uma gestão pública precisa saber tratar os desiguais na proporção de suas desigualdades.


Ilustração para uma desigualação de desiguais - Reprodução

No caso em questão era preciso mesmo “discriminar”, ou seja, “diferenciar”. Diferenciar os alunos grandes dos pequenos e entregar a cada um a mochila adequada a seu biótipo e não o modelo de mesmo tamanho a todos. Se não tinha mochila apropriada para os pequenos nesta oportunidade, que se esperasse por uma próxima.

O “desabafo” do secretário foi infeliz também. Pelo texto [no final da notícia], é difícil entender o argumento, atribuído ao Ministério da Saúde, de que “uma criança não pode carregar mais que 10% do seu peso” para justificar uma mochila com potencial para carregar 100% ou mais.

Do mesmo jeito, o texto ficou estranho quando se pergunta ao público: “querem afirmar que os pais de hoje não estão servindo nem pra carregar a mochila dos seus filhos?”.

Será que as mochilas foram distribuídas para serem usadas pelos pais das crianças? Não é o que mostra a imagem...

Crianças com as mochilas grandes nas Costas (Reprodução/Bocão News) 

As emendas saíram tão ruins quanto o soneto. A julgar pelas respostas, faltou um “índio”. Alguém capaz de identificar os “sinais de fumaça” da situação. Um profissional de comunicação para, nestes tempos de exposição pública, potencializada pela mídias digitais, orientar os gestores como se posicionar diante dos fatos.

No final de sua postagem, o secretário usa trecho de canção dos Novos Baianos para dizer que “ninguém vê minha sacola”. Aqui mais uma infelicidade. As sacolas foram fotografadas e as imagens foram publicadas na internet, sendo vistas e retransmitidas até por telejornais da região sudeste do país.


Assim, “todo mundo” viu a sacola. A sacola é grande. É tão grande que cabe uma criança dentro. E caberia até o “vai dar merda” e o “erramos”. Só não cabe resposta descabida. 

28.4.17

"Direito de ir e vir" carregado

Imagem: Domínio Público - Flicker - http://bit.ly/2oRCpBY

A situação financeira no sítio não era das melhores. 

A produção estava ruim. O dono exigia cada vez mais de todos os bichos. 

Os galos deviam alertar o início do expediente mais cedo. Da vaca se pedia cada vez mais leite. E das galinhas, mais ovos... Todos eram exigidos. Era preciso acelerar a produção. 

O burro também era obrigado a contribuir. A carga da carroça ficou mais pesada. O número de viagens só aumentava. 

Já o dono do sítio seguia em contramão. Ele exigia produção, reclamava dos tempos difíceis, mas não reduzia em um milímetro sequer o seu conforto. Pelo contrário, era cada vez mais gastador. 

O dinheiro era para jogatina e negócios com seus amigos financistas da cidade. Pouco importava a lida sacrificante dos animais do sítio. Eles eram “só” animais. 

Um dia, o dono do sítio adquiriu uma pick-up nova. O carro, comprado em dezenas de prestações e juros abusivos, era de alto luxo. Com mecanismos e funções suficientes para nunca serem utilizadas por ele. 

Quando viram a caminhonete chegando, alguns imaginaram uma redução do trabalho do burro. Ledo engano. 

Com o carro novo, o trabalho do burro duplicou. A pick-up era pra passear na cidade e ostentar diante dos outros carros, menores e mais baixos. Não era carro para entrar na labuta diária como o antigo. O dono temia arranhar a lataria reluzente, etc e tal. 

Os bichos ficaram revoltados. Resolveram organizar um movimento. “Vamos bloquear a porta do sítio”, gritou o papagaio. 

O burro logo reclamou. “Eu gosto de trabalhar, não sou cachorro pra ficar aê latindo e nem gato preguiçoso pra vagabundar”. 

Mesmo sem o apoio de todos, o bichos fizeram o protesto. Eles bloquearam a entrada do sítio. 

Neste dia, o dono não saiu de casa. Também não se importou muito. Dentro de casa ele tinha todo o conforto necessário. Além do mais, nem todos os bichos aderiram ao movimento. “Depois tudo volta ao normal”, pensou o proprietário.  

Na entrada do sítio, de repente começou uma discussão entre os animais do protesto e o burro. 

“Eu tenho meu direito de ir e vir!”, gritava o quadrúpede. 

Além de tudo, ele não queria se indispor com o dono do sítio. Não queria correr o risco de ficar sem a sua ração podre. E temia as chibatadas. “Enquanto eu viver, eu vou aguentando”, vaticinou o burro. 

Assim o burro seguiu indo e vindo, no transporte de sua carga cada vez mais pesada. Continuaria desta maneira até quando lhe fosse possível viver, mas, com o passar do tempo, o trabalho árduo levou seus anos e seu destino mudou. 

“Está velho, não presta pra mais nada”, falou o dono do sítio, antes de trancafiá-lo na cocheira e sacrificá-lo depois.

Os outros animais seguiram sitiados.